A Praça da República, localizada no Centro da cidade de Cuiabá se transformou num dormitório com a REPUBLICA DO COCHILO, poética urbana realizada pelo coletivo à deriva, neste momento, alunos de Poéticas Contemporâneas II em 2013. A proposta foi realçar a idéia da sesta que éuma pequena cochilada no início da tarde, geralmente depois do almoço. Esse período de sono é uma tradição comum em alguns países, particularmente naqueles onde o clima é quente. Localizamos esta tradição na Praça da República e por meio de redes, pufes, colchões de ar e outros criamos um cenário propício para este cochilar.
As reflexões sobre esta ação estão nos textos aqui apresentados. Apenas o texto de Teo Miranda está fora do contexto da praça.
sábado, 20 de setembro de 2014
Além das cercas brancas...
Carlos Benedito Pinto
O cerceamento de nossos desejos dados pelos “bons” hábitos e costumes deixa-nos seguros de nosso correto agir, expressar e relacionar. Os rituais diários que seguimos sem pestanejar, intimidados pela severa condenação da receada alcunha da anormalidade, guiam e delimitam nosso espaço. Mesmo que os nossos cotidianos desejos díspares nos impilam ao devaneio diário, como uma chave, uma escapatória fugaz desta prisão. Vivemos o horário escolar, o ônibus, o semáforo, o parto cesariano, a hora-extra entre outros ‘benefícios’ da organização que nos permitem viver em uma sociedade compartimentada, cronometrada. São, dentre muitos exemplos, elementos de controle já cimentados no nosso cotidiano.
A irregularidade do comportamento tornou-nos um dos mais atemorizantes deslizes num meio social ordeiro. A despeito disso somos impelidos a envilecer a existência dos considerados marginalizados, que vivem num mundo do horário e pensar não-linear, talvez da tentativa de fuga do controle - das senhas e números, da discussão do senso comum e da moral. Aparentam-nos, todos esses pitorescos “malucos”, não terem razão prática para existirem. E não me refiro a um morador de rua que fora excluído á força, mas sim dos que decidiram fugir por conta própria. Vendo-os de longe perambulando ou fazendo artesanato, malabarismo, intervenções fugazes, menosprezando, desregulando, de alguma forma, nossos regulares e tão eficazes cronômetros, causa-nos estranheza e, em alguns momentos, até mal estar. O que pensar a respeito dos hippies fazendo suas peças artesanais, malabaristas, artistas de rua, performers, ou um alucinado intervindo na paisagem da praça, longe da casinha mediana de ‘subúrbio-tipo-americano’, de gramado, cercas brancas e um varal com lençóis alvos ? Seriam senhores aposentados ocupando a calçada movimentada, longe da obrigação do relógio de ponto, suspirando um outrora glorioso, uma afronta ao nosso viver apressado, pragmático e pontual?
Este preâmbulo desordenado é uma tentativa de afastamento subjetivo das sensações que nos foram presenteadas no trabalho de intervenção urbana intitulada “República do Cochilo” feita pelo Coletivo á Deriva como parte do trabalho da disciplina “Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas II” do curso de Mestrado da ECCO ( Estudos de Cultura Contemporânea) na UFMT, ministrada pela professora Dra. Maria Thereza Azevedo. Proposta de trabalho que nos permitiu reflexões das propostas de intervenções urbanas de Guy Debort, com a articulação do Movimento Situacionista. Segundo Paola Berenstein Jacques 1 “O pensamento situacionista, e principalmente sua crítica ao urbanismo enquanto disciplina, poderia ser visto hoje, pelo próprio « campo » do urbanismo, como um convite à reflexão, à auto-crítica e ao debate. Uma proposta para se pensar agora, em conjunto com todos os atores sociais urbanos, sobre o futuro das cidades existentes e a construção das cidades do futuro.” E , fazendo uma articulação Johan Huizinga, no seu ensaio sobre a função do jogo, é um pensamento e ação artística interventiva que questiona o que seria considerada a transição do chamado “homo faber” para o “homo luden”.
O itinerário da nossa cartografia subjetiva partiu do chamado senadinho, residência do falecido advogado Oriente Tenuta Filho, situado ao lado da Prefeitura Municipal de Cuiabá, na qual são feitas reuniões diárias onde senhores aposentados discutem desde política até futebol. Um festivo alvoroço de pessoas vividas, relembrando, questionado, declamando lindamente Castro Alves em plenos pulmões, encheu de vida as nossas percepções de memórias do que é chamado cuiabania.
Partimos para a Praça da Republica para intervenção em si. Chegando lá já havia alguém interferindo no estado de espírito do ambiente, um senhor tinha se instalado no lado leste da praça e com seus apetrechos: ‘copo’ feita da base de garrafa pet com areia, pedra, dinheiro, etc, colocados sistematicamente na borda do canteiro; sapato amarrado no poste, alguns pedaços de caixa de papelão espalhados pelo chão. Havia uma inexplicável agressividade por parte desde senhor em relação aos transeuntes, pois o mesmo se incomodava com as pessoas que transitavam no espaço que ele estava ocupando e até mesmo agredia alguns. E, por conta dessa atitude, a polícia foi acionada e o instalado teve que deixar o lugar público.
Esse episódio em especial nos fez refletir a ética do artista ou coletivo em intervenções urbanas. Obviamente aquele senhor em seu mundo particular, preso em suas particularidades subjetivas, desconectado do que consideramos realidade, não apresentava uma proposta de intervenção ou instalação clara. Mas é latente que havia um incomodo algo que o fez se deslocar até aquele espaço público e se expor de alguma forma. Apesar de nossa racionalidade acadêmica, em certa medida, desdenhar tal ação.
Executamos, com muito êxito, a nossa intervenção planejada, estudada, organizada e muito bem recebida, com a participação de várias pessoas que passavam e/ou permaneciam na praça durante a nossa estada.
Não quero suscitar uma comparação assertiva entre a semelhança pragmática, ‘racional’ da nossa intervenção com a deste senhor, muito menos aviltar a intervenção muito bem sucedida do nosso coletivo, e sim refletir a respeito da impressão que nos chamou a ocupação de espaços públicos. Da quebra do ritmo imposto em nossa vida cotidiana, ‘normal’. Do desmoronamento da sintaxe das ruas ordeiras baseadas em nossa imaginação de subúrbios de classe média ou dos departamentos cheios de uma plácida disposição. Pois, como já me mencionei anteriormente, trata-se aqui de um texto de afastamento, de estranhamento, do desfocar do olhar.
Olho com certa admiração aquele sujeito maltrapilho que se mostrou desesperado, além da cômoda bolha das cercas brancas.
domingo, 8 de setembro de 2013
A Grande Retomada
Mestrando: Téo de Miranda
Orientadora: Patrícia Ozório
O presente texto pretende apresentar minha experiência
vivenciada durante atividade proposta na disciplina Tópicos Especiais em Poéticas
Contemporâneas II: Atrações Temporárias ministrada pela professora Maria Thereza
Azevedo na UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso). Nesta disciplina foi sugerida
a realização de uma intervenção urbana, que denominou-se República do cochilo. Através
dos processos colaborativos e da fruição artística de cada estudante pôde-se
alcançar impressões sobre a cidade e seu cotidiano desenfreado.
A intervenção
contou com vários momentos, regados a sombrinhas que refletiam sobre a
falta de árvores na cidade verde até a banca do desabafo, onde o cidadão
pudesse expor seus pensamentos/emoções.
Distante dali
Enquanto a turma de mestrado realizava sua intervenção em algumas praças e no 'Senadinho' em Cuiabá, eu estabelecia também neste dia 5 de junho de 2013, minha observação diante da intervenção denominada ''retomada'' realizada pelos indígenas Terena no município de Aquidauana - MS, mais precisamente em um Distrito desta cidade, denominado de Taunay, que é composto por aldeias indígenas e fazendas de criação de gado.
A partir das
leituras de sala de aula, da intenção da intervenção república do cochilo e da
minha experiência com os Terena, procurarei aqui trazer a luz diversas questões
para se pensar a cidade em contraponto a retomada. Ou
seja, aplico o pensamento situacionista no contexto em que eu estava inserido
naquele momento e a modificação desses espaços em lugar de/em espaço da
revelação, da crítica e da transformação. (SILVA, 2008).
Embasando-me no interesse dos
situacionistas pelas questões urbanas como terreno de ação, de produção de
novas formas de intervenção e de luta contra a monotonia, ou ausência de paixão,
da vida cotidiana moderna.
O desenvolvimento das cidades, o crescimento dos mercados globalizados e a expansão dos latifúndios, afetam diretamente as populações indígenas, que vem sofrendo com a perda dos seus direitos a terra e interferindo no modo de vida tradicional.
Estava eu ali, então em uma retomada de
terras, realizada pelo povo Terena num
Distrito de uma cidade. Sobre este povo, é interessante observar que estão em trânsito
entre as cidades e as aldeias, para buscar formas de subsistência já que trata-se
de um povo comerciante e com facilidade de diálogo com o não indígena, e muitos
deles trabalham e estudam nas mediações das aldeias.
Segundo Guy Debord, o movimento situacionista
propunha a apropriação dos espaços, a criação das situações, a mudança do curso do caminhar e do
olhar ela. Ao realizar a leitura deste trecho destaco uma palavra chave para explicar
a motivação dos movimentos de retomada Terena. Destaco então:
Propunha
a apropriação dos espaços: historicamente esses espaços onde acontecem
as retomadas Terena, pertenciam a este povo até a guerra do Paraguai. Enquanto os Terena lutavam pelo Brasil junto as tropas brasileiras, esses espaços foram vendidas e cedidas pelo Estado aos latifundiários sem consulta as
comunidades indígenas. Nos dias atuais
os Terena buscam se reapropriar desses espaços ancestrais. Na fala de uma
senhora Terena, ela explicita que 'a retoma não acontece para requerer os bens
dos fazendeiros e sim para requerer o que é nosso (do povo Terena)'.
Outra relação que faço da retomada ao pensamento dos situacionistas, esta
no fato deles (os situacionistas) terem percebido que não seria possível propor
uma forma de cidade pré-definida, pois segundo suas próprias idéias, esta forma
dependia da vontade de cada um e de todos.
No caso da comunidade indígena se trata de uma terra coletiva. Vê-se que toda a composição do local foi
modelada de acordo com a vontade e consenso conjunto de cada indígena ali
presente, movidos pela cultura tradicional do espaço e suas habitações e também
atendendo a necessidade de cada família ao compor o espaço, para que atenda a necessidade de todos
ali presentes. A utilização da terra por
parte dos fazendeiros é uma apropriação individualista, onde se prioriza a
produção de bens e consumo, com base na criação do gado e a exploração de mão
de obra.
É isso
que as retomadas pretendem. revolucionar o cotidiano 'machucado' das terras
ancestrais. Propor uma intervenção política, de transformação geográfica e cultural,
respeitando o tempo vivenciado por aqueles habitantes. Um tempo, que se
relaciona com as cidades próximas, mas que, seguem um fluxo de pensamento
diferenciado.
Interferindo
Estive
na retomada com a função de realizar o registro de foto e vídeo e posteriormente
editar este material e disponibilizar na internet para que as 'cidades' tenham
acesso ao conflito. Essa ação aconteceu no dia em que existia a expectativa da
chegada da Polícia Federal para reintegração de posse, ou da força nacional com
a missão de amenizar os conflitos. Felizmente tivemos a visita da Força
Nacional, que presenciou de perto a situação deste povo e pôde dialogar com a
comunidade.
Encanto - olhar estrangeiro
O meu encanto
aconteceu ao ver a força de vontade de ocupar e cultivar uma terra ferida pela
exploração dos seus recursos, já que a criação de gado enfraquece o solo (nas
palavras dos próprios Terena) para a plantação, porém que carrega valores
simbólicos e de memória ancestral.
Referência bibliográfica
JACQUES, P. B. . Urbanismo
à deriva: pensamento crítico situacionista. In: VII Seminário de História
da Cidade e do Urbanismo, 2002, Salvador, 2002.
SILVA, Regina Helena Alves da. Cartografias
Urbanas: construindo
uma metodologia de apreensão dos usos e apropriações dos
espaços da cidade. Visões Urbanas - Cadernos PPG-AU/FAUFBA Vol.V - Número
Especial – 2008.
sexta-feira, 30 de agosto de 2013
República do Cochilo
Daniel Pellegrim Sanchez
Não
foi um passeio, tão pouco foi uma viagem, não fez parte de uma rotina de
trabalho, de uma caminhada cotidiana, de um momento de lazer ou entretenimento.
Havia indignação, mas nas vidraças do globalitarismo[1]
lançamos o cochilo, a República do
Cochilo. Cochilos (a)tirados em praça pública, contra a rapidez dos fluxos
modernos, contra a globalização e suas fábulas, seus espetáculos que encobrem,
escamoteiam inúmeras perversidades.
Daniel Pellegrim Sanchez, sem título, 2013,
fotografia.
A ideia da realização da República do Cochilo - uma intervenção
urbana - surgiu em sala de aula, dentro do programa de pós-graduação em Estudos
de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso (ECCO - UFMT),
onde estudamos as disciplinas de Poéticas Contemporâneas.
Trabalhamos, junto à professora Dr.ª
Maria Thereza Azevedo, com vários textos relacionados as práticas estéticas em
espaços urbanos. Dentro das perspectivas das intervenções urbanas, das derivas
propostas por Guy Debord, um dos protagonistas do movimento Internacional
Situacionista[2], definimos
os locais de nossas intervenções. Foram escolhidas a Praça Alencastro e a Praça
da República no centro de Cuiabá, capital do estado de Mato Groso e também o
dia, 5 de julho de 2013.
Cada
aluno pode colaborar com informações, relatos, experiências, fotos e, a partir
disso, definimos que iríamos passar o dia no centro de Cuiabá, sendo que pela
manhã iríamos ao Senadinho - apelido
dado a um grupo de aposentados que reúnem-se diariamente ao lado da Praça
Alencastro para conversas livres - e iríamos interagir com eles buscando
discutir pautas da cidade. Depois, nos deslocaríamos pelo centro, caminhando
para algum restaurante onde almoçaríamos, finalizando o trajeto na Praça da
República[3],
onde instauraríamos a República do
Cochilo. Todo esse percurso seria realizado com sombrinhas coloridas
protegendo-nos da intensa luz e calor do sol.
O
nome cochilo foi deliberadamente escolhido, pois é comum em lugares quentes
como Cuiabá a prática do cochilo depois do almoço, o que segundo conhecimentos
tradicionais, revigora, previne doenças, melhorando a disposição e a saúde. Depois
do almoço, estando o grupo de alunos na Praça da República, que naquele momento
portava em seu marco central um cartaz com o nome República do Cochilo, espalhamos colchões de ar, amarramos redes
nas árvores, colocamos puffs e
cadeiras, tudo isso para uso de quem quisesse mudar de ritmo, parar, sentar-se,
cochilar e também desabafar. Falamos em desabafo, pois também propomos a banca do desabafo, qualquer pedestre
poderia parar e desabafar, escrevendo em papéis suas propostas, desejos,
angústias etc. Papéis que algumas vezes iam para uma bacia com água e outras
eram pendurados em varais.
Daniel Pellegrim Sanchez, sem título, 2013,
fotografia.
Os
varais receberam também outros objetos, como as sombrinhas, uma tela artística
e um galho de ecsória[4].
Um galho sem terra. Ao fundo, a escultura de um índio sem território que agoniza no colo da justiça... Eu estava
deitado, "cochilando", quando uma mulher que passava a passos largos,
com pressa, colocou o tal galho no varal. Pareceu-me obra do acaso. O galho ficou
por pouco tempo, o suficiente para que eu tirasse uma única fotografia, logo, talvez
por não possuir escrita, nem o trabalho/parada/pensamento dos outros "desabafos",
o galho foi retirado do varal. Vi aquele galho como um desabafo do acaso,
passageiro, censurado, que rouba a cena por alguns instantes e some. Foi como
se a pequena sombra do galho, por um momento, entrasse em sincronia com o passeio das sombrinhas[5]
para aliar-se a suas intenções.
Daniel
Pellegrim Sanchez, Desabafo do acaso, 2013,
fotografia.
Daniel
Pellegrim Sanchez, Não por acaso, 2013,
fotografia.
Sombrinhas
que querem, pedem sombras para a cidade. O passeio de sombrinhas
incitou-nos a pensar sobre o tamanho e a quantidade de sombras. A falta de
árvores em Cuiabá é facilmente constatada, basta esquadrinhar a cidade a pé que o sol a pino faz a denúncia. Quando elas existem, são pequenas,
com grandes espaços entre uma e outra. Comerciantes reclamam que elas encobrem
as fachadas e fazem alguma sujeira; políticos dizem das dificuldades de plantio
alegando falta de espaço, as dificuldades com o período de seca, que o solo é frágil e as tempestades com vento
derrubam as árvores tornando a manutenção inviável, onerosa etc.; as podas realizadas
pela companhia de energia é grosseira, muitas vezes acabando com as copas das
árvores. Também constatamos que, com o crescimento das cidades, novos
empreendimentos surgem a todo momento e a lógica de construção moderna, diante
desta grande especulação imobiliária, costuma ser predatória, retirando toda a
cobertura arbórea do terreno, cortando-se as árvores grandes, centenárias, para,
noutros, pequenos canteiros, colocarem pequenos arbustos, com poucos resultados
do ponto de vista ambiental. Isso também ocorre com as soluções modernas de
mobilidade urbana, como vimos com a implantação do veículo leve sobre trilho (VLT),
onde muitas árvores foram cortadas e ainda não sabemos se haverá compensação
para esses danos ambientais.
Benedito Nunes, O pássaro e o eletricista, OST,
110X95, 1998.
Não estamos desprezando as pequenas
árvores, os arbustos, mas temos que pensar que árvores grandes, com copas
frondosas, além de possibilitarem a liberação visual das fachadas dos
comércios, através da poda dos galhos baixos, produzem de forma mais eficiente
os resultados de esfriamento e a qualidade de vida necessários na região. Há cidades no Brasil onde as ruas são verdadeiros túneis verdes, e isso não atrapalha o
comércio, tão pouco o trânsito, ao contrário, as pessoas procuram esses locais,
pois a mobilidade é mais agradável, existe sombra e mais vida.
Existe espaço, existe tecnologia,
existem árvores de grande porte que se adaptam bem a essas localidades, ao clima, é
preciso paciência e o cuidado para que elas cresçam. Temos a notícia que é
possível fazer covas cuja profundidade, o preparo e a forma de plantio fazem
com que a árvore ganhe sustentação para resistir a eventuais ventanias e também ao período de seca. A
disputa do espaço aéreo com os fios é um dos principais problemas na produção
de sombras, nesses casos a principal solução tem sido o rebaixamento da fiação.
Essa alternativa embora tenha um custo inicial elevado tem uma série de
vantagens a médio e longo prazo. Em municípios onde não é possível tais
investimentos, há como ocupar o lado oposto aos postes de eletricidade, ou
mesmo os canteiros centrais das vias de mão dupla, em algumas cidades
brasileiras grandes árvores ocupam espaços mínimos em canteiros centrais. Com
os cuidados certos e tecnologia é possível também a coexistência dos fios e das
copas das árvores. Em muitos locais, o corte de determinados tipos de árvores
foram proibidos, etc.
Árvores de grande porte garantem
sombreamento, seja na proteção da insolação indesejada, seja na redução do
consumo de energia, seja na matização das superfícies pavimentadas ou
construídas, criando o efeito de filtragem dinâmica. (MASCARO, s/d).
O
passeio com as sombrinhas nos provocou a reflexão sobre mobilidade urbana,
qualidade de vida, pois sabemos que "juntamente
com o esfriamento pela transpiração, as sombras das árvores podem ajudar a
refrescar os locais, evitando o aquecimento das superfícies artificiais que
estão sob a cobertura arbórea. Estes efeitos podem reduzir a temperatura do ar
em até 5ºC"[6].
A
arborização pública não só é uma ótima estratégia de sustentabilidade urbana,
mas em locais quentes como a baixada cuiabana, trata-se de uma opção necessária
para a melhoria da qualidade de vida, afinal, não é preciso ser climatologista para prever que, com os modelos adotados na construção civil e com a crescente diminuição de áreas e espaços "verdes", as cidades da baixada tendem a ter
dias em que o nível de calor poderá atingir intensidades impróprias para o
trabalho, para a vida. Pensamos que o plantio, assim como o desenvolvimento de
tecnologias de plantio e manutenção de árvores deve estar sempre em pauta.
Árvores em praças e parques, com um manejo adequado, bem cuidadas, incentivam a
interação social, a ocupação dos espaços públicos e, de acordo com Jeremy
Mennis (apud DUFFY, 2013, s/p), "o aumento de áreas de vegetação nas
cidades não só melhora os indicadores ambientais e a qualidade de vida, como
também pode ajudar a reduzir os níveis de criminalidade.”
A
artificialização do clima, que nessas localidades podem atingir níveis
espetaculares, pode amenizar, adiar o problema, mas essa mesma artificialização
cria outros problemas, a exemplo do ressecamento do ar em ambientes
refrigerados, do choque térmico ao sair e entrar nesses ambientes, de problemas
respiratórios devido ao acúmulo de pó nos equipamentos e dutos de ventilação,
do encarecimento do custo de vida devido ao consumo de energia desses
equipamentos, dos impactos ambientais na geração dessa energia e no descarte
desses mesmos equipamentos etc.
Contra
as árvores temos a sociedade do espetáculo com sua comunicação visual comercial
agressiva, com a especulação imobiliária, com ruas congestionadas e veículos
motores semi-vazios, com o desmatamento ilegal, com o problema do custo das
passagens dos ônibus e futuramente do VLT, com a falta de boas calçadas para
caminhadas e ciclovias etc. A tudo isso soma-se a exploração irresponsável dos
recursos naturais onde, em nome do lucro, tudo é possível, tudo é permitido. Desse
modo, no interior do país, a lógica globalitarista se esconde, se expande e
encontra pouca oposição.
Daniel
Pellegrim Sanchez, Justiça de salto alto, 2013, fotografia.
Escultura de Jonas Corrêa.
Percebemos que no interior do
Brasil, no centro da América do Sul, a modernidade que aqui chega tardiamente,
segue seu projeto rumo a completude, muitas vezes produzindo resignação,
conformismo, ou como diria Milton Santos, uma perversa tranquilidade diante das
fábulas globais criadas por uma lógica que privilegia o lucro, a competividade
de massacre que acentua e aprofunda desigualdades sócioespaciais (SANTOS, 2005,
p.253).
"Cochilando" flagramos os
antagonismos que são comuns a muitos centros históricos de cidades brasileiras.
Na Praça da República, a catedral moderna que foi (im)posta sobre a colonial
evidencia contradições. A sucessão de diferentes concepções arquitetônicas e
urbanísticas vista em espaços reduzidos de praças do centro urbano de Cuiabá,
somada ao ritmo constante da passagem de veículos e pedestres, não só nos
proporciona uma reflexão sobre a sucessão de técnicas e ritmos, mas também
revela a realidade da "interdependência
universal dos lugares" (SANTOS, 2005, p. 255). Interdependência que se faz por
meio de lógicas verticais impostas pela especulação financeira internacional,
que está ligada à realidade informacional, ao mercado globalizado.
As praças
centrais de Cuiabá também revelam as realidades profundas da colonialidade. O
centro da cidade, diferentemente do centro de outras cidades ribeirinhas, não
foi feito à margem de um rio. Do rio Cuiabá, não se vê o centro da cidade e
vice versa, o centro está acerca de dois quilômetros do rio, caminho por onde
chegavam e saíam os primeiros colonizadores. O centro foi escondido, estrategicamente
invisibilizado como forma de assegurar o território e a retirada do ouro que
ali se fazia abundante.
"Olhando
suas plantas setecentistas somos possuídos pela impressão de que, ao ser
edificada, se escolheu um lugar estrategicamente resguardado, escondido. O rio
servia de caminho apenas para aqueles que sabiam como chegar". (COSTA,
2000, p.27)
Não há mais ouro no centro de
Cuiabá, mas o território do estado de Mato Grosso é grande e rico em recursos
naturais. Muitos desses recursos naturais estão em territórios indígenas,
quilombolas, em áreas de preservação ambiental etc. e as tensões nesses
territórios são constantes. A invisibilidade do território, o encobrimento das
perversidades exploratórias do ouro, que pouco deixou para o local e que antes
se dava pelo simples afastamento da cidade do campo visual de quem passava pelo
rio, hoje é feito por dispositivos modernos de colonialidade, a exemplo do controle
da informação. A exploração da terra, dos recursos naturais continua deixando
poucos benefícios para o local em relação às riquezas que são extraídas.
Diante da realidade informacional,
Santos alerta para as manobras e o controle imposto pela grande finança
(grandes corporações internacionais, bancos, governos mundiais etc.), que tem a
informação como instrumento de dominação e colonização. De acordo com Santos, a informação é o grande instrumento do
processo de globalitarismo e da
produção de novas formas de totalitarismo de vida, porém, quando manejada por
pequenos grupos, de forma inteligente, podem produzir exatamente o efeito
oposto[7].
Desse modo, Milton Santos dá seu grito do território[8],
ação afirmativa que visa responder às verticalidades perversas da globalização,
se opor aos fundamentalismos do consumo irresponsável através de processos de
resistência que partem dos lugares onde tais perversidades foram impostas. Imposições
que ficam hiper-evidentes nessas regiões diante, por exemplo, do ruralismo
neoliberal, que embora tenha alta produtividade, utiliza-se de um modelo de
produção ligado à indústria da guerra, com a utilização de grandes quantidades
de veneno, de sementes transgênicas que dependem de ativações químicas, com financiamentos
vinculados aos grandes bancos. Soma-se a tudo isso o desflorestamento ilegal.
Santos, buscando o efeito
comunicacional oposto à informação globalitarista, observa como as sociedades
periféricas se estruturam, desvelando suas potencialidades produtivas, seus
modelos sustentáveis de produção, seja na construção de moradias, na
agricultura, na circulação das pessoas, nos comportamentos lúdicos
construtivos, nas relações interpessoais, nas formas de manifestação e constata
que, embora em muitos casos exista escassez de objetos e materiais, estas
comunidades produzem respostas originais, com o uso criativo desses mesmos
objetos e tecnologias, conseguindo globalizar um olhar outro. Santos fala que a
produção criativa dessas comunidades muitas vezes é invisibilizada devido ao
seu caráter político, de oposição à racionalidade única da modernidade, desse
modo, a profunda relação com o local cria formas próprias de racionalidade e
geralmente estes enunciados são contrários ou são críticos à lógica da
dependência da ordem global. A arte, a movimentação cultural pode dar
visibilidade crítica ao espetáculo globalitarista, produzindo enunciados de
oposição, e isso costuma ser veementemente combatido, seja através da cooptação
do(a) artista para a "mesma arte", seja provocando isolamentos,
difamações, desqualificações e até torturas psicológicas.
Com as respostas das periferias, do
lado de cá (sul do mundo), Santos prevê um novo período histórico, que ele
chama de período popular da história. Para Santos, devemos "pensar na
construção de novas horizontalidades que permitirão, a partir da base da
sociedade territorial, encontrar caminhos que nos libere da maldição da
globalização perversa que estamos vivendo e nos aproxime da possibilidade de
construirmos uma outra globalização, capaz de restaurar o homem na sua dignidade"
(SANTOS, 2005, p. 256).
Daniel Pellegrim Sanchez, sem título, 2013,
fotografia.
Dignidade, cidadania e solidariedade
são assuntos centrais na obra de Milton Santos, para ele “O Brasil jamais teve cidadãos, nós, a classe media,
não queremos direitos, nos queremos privilégios, e os pobres não tem direitos,
não há, pois, cidadania neste pais, nunca houve!” [9].
Santos afirma que diante da geopolítica que se instalou, proposta pelos
economistas e imposta pela grande mídia, o debate pela civilização foi trocado
pelo debate econômico, e esse hiper-reducionismo se dá através do pensamento único, onde uma parcela muito
pequena de privilegiados aceita tranquilamente a fome, as injustiças,
desigualdades, ou seja, não são cidadãos, não se sentem co-responsáveis pela
coletividade.
Assim, a "república que
cochila", pode ser também a república que aceita tranquilamente o
esvaziamento do conceito de democracia, que foge ao discurso da cidadania e da
dignidade humana, que se vende aos interesses da grande finança, que cede aos lobbies e às pressões da grande mídia.
Cochilo que ocorre diante da colonialidade do poder, do saber e do ser[10], diante do lado escuro do modernidade (MIGNOLO, 2011),
que faz esquecermos o território, a vizinhança e a solidariedade. O cochilo da
república se dá, muitas vezes, embalado em redes de "homens rápidos"
(SANTOS, 2010). Sobre homens e seus ritmos Milton Santos (2010, p. 594) diz:
Durante séculos,
acreditávamos que os homens mais velozes detinham a inteligência do mundo. A literatura
que glorifica a potência incluiu a velocidade como essa força mágica que
permitiu à Europa civilizar-se primeiro e empurrar, depois, a sua civilização
para o resto do mundo. Agora, estamos descobrindo que, nas cidades, o tempo que
comanda, ou vai comandar, é o tempo dos homens lentos. Na grande cidade, hoje,
o que se dá é tudo ao contrário. A força é dos "lentos" e não dos que
detêm a velocidade elogiada por Virilio em delírio, na esteira de um Valéry
sonhador. Quem, na cidade, tem mobilidade - e pode percorrê-la e esquadrinhá-la
- acaba por ver pouco da cidade e do mundo. Sua comunhão com as imagens,
frequentemente pré-fabricadas, é a sua perdição. Seu conforto, que não desejam
perder, vem, exatamente, do convívio com essas imagens. Os homens "lentos",
para quem tais imagens são miragens, não podem, por muito tempo, estar em fase
com esse imaginário perverso e acabam descobrindo as fabulações. É assim que
eles escapam ao totalitarismo da racionalidade, aventura vedada aos ricos e as
classes médias. Desse modo, acusados por uma literatura sociológica repetitiva,
de orientação ao presente e de incapacidade de prospectiva, são os pobres que,
na cidade, mais fixamente olham para o futuro.
Contra o cochilo da república,
Milton Santos propôs manifestações populares, como as acontecidas a partir de
junho de 2013 em todo Brasil, um período popular da história, propôs também a
ocupação de territórios, dos espaços públicos, a comunicação alternativa e
também trabalharmos ritmos outros.
"Tudo, todo o trabalho, todo o som
Cada passo que damos é ritmo
Cada palavra que falamos é ritmo
Tudo é ritmo"[11]
A intervenção urbana no centro de
Cuiabá, não só nos proporcionou um outro olhar sobre a importância da sombra em
espaços urbanos, mas também um encontro com os pensamentos de Milton Santos.
Pensamentos que nos dão ferramentas para nos reconhecer enquanto opositores aos
totalitarismos do pensamento único, um pensamento que encontra espaço
utilizando-se de dispositivos perversos de colonialidade a exemplo do racismo, do
sexismo, do patriarcalismo, do hiper-reducionismo ao lucro, muitas vezes
explorando o trabalhador local, com pouca responsabilidade ou retorno social,
degradando de maneira insustentável os recursos naturais. Reconhecendo-nos e
conhecendo o território em que vivemos, há sempre a possibilidade de
produzirmos respostas, seja nas artes, a exemplo da intervenção urbana que foi utilizada
para o texto desse trabalho, seja buscando soluções para os problemas da
cidade, do campo, seja nos relacionando de forma solidária e condescendente.
Daniel Pellegrim Sanchez, Passeio de sombrinhas, 2013, fotografia.
BIBLIOGRAFIA:
COSTA,
Maria de Fátima; DIENER, Pablo. Cuiabá:
Rio, Porto, Cidade. Cuiabá : Edição dos autores, 2000.
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SANTOS,
Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo : Cortez, 2010.
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_______________. O lugar e o cotidiano. In:. SANTOS, Boaventura de
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do Sul. São Paulo : Cortez, 2010
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Thomas, LEEUWENBERG, Floris. Foli: Não há movimento sem rítmo. Scott
Underwood escreve: "Foli (a palavra Malinke para o ritmo) é um filme de 11
minutos dirigido por Thomas Roebers e Floris Leeuwenberg que mostra a vida
diária rítmica de Baro, uma aldeia Malinke na Guiné. . Disponível em:<http://www.youtube.com/watch?v=lVPLIuBy9CY>
Acesso em 21/08/2013.
TENDLER, Silvio.
Encontro com Milton Santos ou O Mundo
Global Visto do Lado de Cá. Documentário de Silvio Tendler. Rio de Janeiro.
Caliban Produções. 2006 Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM>
Acesso em 21/08/2013.
[1]Para Milton Santos o globalitarismo é um neologismo que representa a globalização somada ao totalitarismo, ou seja, a globalização perversa e totalitária em que vivemos. "Eu chamo a globalização de globalitarismo, porque estamos vivendo uma nova fase de totalitarismo. O sistema político utiliza os sistemas técnicos contemporâneos para produzir a atual globalização, conduzindo-nos para formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão, que exigem obediência imediata, sem a qual os atores são expulsos da cena ou permanecem dependentes, como se fossem escravos de novo. Escravos de uma lógica sem a qual o sistema econômico não funciona. Que outra vez, por isso mesmo, acaba sendo um sistema político".Entrevista concedida a José Corrêia Leite, editor do Jornal Em Tempo. Disponível em:<http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=2412> Acesso em 21/08/20013.
[2] A IS (Internacional Situacionista) -
grupo de artistas, pensadores e ativistas situcionistas - lutavam contra o
espetáculo, a cultura espetacular e a espetacularização em geral, ou seja,
contra a não-participação, a alienação e a passividade da sociedade. Eles
acreditavam que o principal antídoto contra o espetáculo seria o seu oposto: a participação
ativa dos indivíduos em todos os campos da vida social, principalmente naquele
da cultura. O interesse dos situacionistas pelas questões urbanas foi uma
consequência da importância dada por estes ao meio urbano como terreno de ação,
de produção de novas formas de intervenção e de luta contra a monotonia, ou
ausência de paixão, da vida cotidiana moderna. A crítica urbana situacionista
continuaria assim, em sua essência, pertinente ainda hoje. Assim como a sua
proposta principal de participação dos cidadãos na construção das cidades, sobretudo
se pensarmos na atual “espetacularização” do espaço urbano (JACQUES, 2002).
[3] Conforme
sinalização posta no local, a Praça da República foi fundada em 1722,
juntamente com a Igreja Bom Jesus de Cuiabá, a mando do capitão-mor Jacinto
Barbosa Lopes quando Miguel Sutil descobriu ouro no córrego da Prainha. Em
1922, bicentenário da capital, a praça passou por reformas e recebeu iluminação
elétrica, passando a chamar-se Praça da República.
[4] Planta cultivada em um dos canteiros da praça, que se
adapta bem ao calor, necessita de poucos cuidados e produz flores com várias
colorações.
[5]
Intervenção urbana do Coletiva à Deriva que pede mais sombras para Cuiabá.
[6]MASCARO, Juan José; DIAS, Ariane Pedrotti de Ávila;
GIACOMIN, Suelen Debona: Arborização
Pública como Estratégia de Sustentabilidade Urbana. Passo Fundo:
Universidade de Passo Fundo – Faculdade de Engenharia e Arquitetura -
Disponível em:<http://www.usp.br/nutau/CD/29.pdf> Acesso em 15/08/2013.
[7]TENDLER, Silvio. Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá. Documentário de Silvio Tendler. Rio de Janeiro. Caliban Produções. 2006 Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM> Acesso em 21/08/2013.
[8] De
acordo com a Prof. Maria Adélia Aparecida de Souza (2005) o Grito do Território
é uma espécie de revanche ao globaritarismo,
ou seja, ações que a partir do território e dos lugares irão gerar um
novo tempo em que Milton Santos denominou de período popular da história,
período esse mais solidário.
[9] TENDLER,
Silvio. Encontro com Milton Santos ou O
Mundo Global Visto do Lado de Cá. Documentário de Silvio Tendler. Rio de
Janeiro. Caliban Produções. 2006. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM>
Acesso em 21/08/2013.
[10] Veja-se
SANTOS 2010 para um análise mais aprofundado.
[11]
FOLI: Não há movimento sem ritmo. Scott Underwood escreve: "Foli (a
palavra Malinke para o ritmo) é um filme de 11 minutos dirigido por Thomas
Roebers e Floris Leeuwenberg que mostra a vida diária rítmica de Baro, uma
aldeia Malinke na Guiné. Disponível em:<http://www.youtube.com/watch?v=lVPLIuBy9CY>
Acesso em 21/08/2013.
sexta-feira, 16 de agosto de 2013
Conversando com Guy Debord naquela praça... aquela que fica na frente da igreja... aquela que é cheia de árvores.
Anna Natale
Este é o meu manifesto e será escrito em primeira pessoa.
Abrir os olhos, virar de lado, fechar os olhos, despertador, abrir os
olhos, cambalear até o chuveiro, a água nunca está quente o suficiente, quero
as roupas menos amassadas, café-da-manhã? Não, já estou atrasada.
Vida cotidiana de acordo com Henry Lafebvre é: o que subsiste quando se subtrai do vivido todas as atividades
especializadas.
Pego esta afirmação e transformo em pergunta, pra mim e para você:
O que subsiste em você quando
se subtrai do vivido todas as atividades especializadas?
Hmmmm.
A criação deste texto se torna uma intervenção em mim mesma.
Hmmmm.
E então... o que sobra?
Sobra a inércia, sobra o não fazer, sobra o inesperado, sobra a
espontaneidade.
Paro de digitar, olho para direita e vejo o meu quadro branco e está
escrito “amor e espontaneidade”.
PARE! VOLTE! FOCO! REDIJA! SEM ERROS! É UM ARTIGO! SEJA FORMAL! PUBLIQUE!
SIGA A SANTA CARTILHA LATTES E CAPES!
Mais uma chance:
O que subsiste em você quando
se subtrai do vivido todas as atividades especializadas?
Guy Debord quando sentado na mureta me disse: A vida quotidiana se encontra sempre em outra parte, entre os outros, e
em todo caso, entre as classes não-sociólogas da população.
E então, lá fomos nós:
Missão: Conseguir tornar a praça confortável o bastante para que as
pessoas se sentissem livres para descansar e se expressar.
Alvos:
(1) Atrasados – Aqueles que utilizam a praça como forma para diminuir a
distância até o destino desejado.
(2) Matadores de aulas – Jovens e adultos que vivenciam na praça um
refúgio para fugirem das aulas e do trabalho.
(3) Meditadores – Pessoas que simplesmente aproveitam a praça e relaxam
nela.
(4) Resolvi ir ao centro hoje – Aqueles que não costumam passar pelo
centro e muito menos pela praça, mas passaram por ali no dia e na hora certa.
Munição: Redes, colchões de ar, revistas de arte e cultura, pufs, varal,
pregadores, folhas em branco, canetas e bacia com água.
Armados de guarda-chuvas até os dentes fomos em direção a praça, éramos
observados, éramos suspeitos. No ambiente de diversidade a nossa diversidade se
tornou estranha. Olhares nos acompanhavam e nos interrogavam em silêncio. No
trajeto me via como uma cientista, daquelas que estudam os animais. Cadê o meu
jaleco e a minha prancheta? Eu tinha o poder de observar e analisar aquelas
cobaias em laboratório.
...certos intelectuais se
vangloriam assim de uma ilusória participação pessoal no setor dominante da
sociedade, através da possessão de uma ou mais especializações culturais; isso
os situa em primeiro plano, para se dar conta do ato seguido de que o conjunto
desta cultura dominante está sensivelmente apoiado. Mas qualquer que seja o
juízo que se pronuncie sobre a coerência dessa cultura ou sobre o interesse de
seus aspectos, a alienação que ela impôs aos intelectuais em questão consiste
em fazê-los crer, desde o céu dos sociólogos, que estes se encontram
completamente fora dessa vida quotidiana de qualquer povo, ou situados num
lugar por demais elevado na escala dos poderes humanos, como se estes mesmos
não fossem igualmente pobres.
E então fui quebrada, o reconhecimento da minha própria ignorância foi
jogada em mim como toda aquela areia que dança e povoa as calçadas, carros e
roupas em toda a cidade de Cuiabá. O estudo de caso não eram eles, éramos nós.
Quem eu era na praça? Quem eu achava que era? Quem eu tinha me tornado? Se eu
não era mais a cientista eu poderia ser a meditadora, não poderia ser os dois?
Nunca estive naquela praça antes, poderia transformá-la como parte do meu
quotidiano?
A vida quotidiana é a medida de todas as coisas: do cumprimento, ou
melhor, do descumprimento das relações humanas, do uso do tempo vivido, da
busca da arte, da política revolucionária.
Relações humanas... hmmmm... é melhor eu sublinhar isso. E então me dei
conta de que naquela praça arborizada, com redes, colchões e pessoas rindo eu
tinha levado as minhas próprias barreiras, eu não queria me relacionar, eu não
queria me despir deixando de lado a merda da seriedade. O olhar observador que
finge ser superior estava ativado de forma sutil, quase camuflada. Eu achava
que estava neutra naquele ambiente, mas fui ingênua. Na praça eu era palavras,
eu representava palavras do que deveria ser, do que deveria ter me tornado e de
todos os outros “não” e “não pode” que estavam impregnados em mim. Eu estava na
minha prisão, na minha miséria.
(...) a vida quotidiana está organizada dentro dos limites de uma
pobreza escandalosa. (...) é uma pobreza imposta em cada instante pela força e
a violência de uma sociedade dividida em classes; uma pobreza historicamente
organizada de acordo com as necessidades históricas da exploração. O uso da
vida quotidiana, no sentido de um consumo do tempo vivido está condenado pelo
reino da carência de tempo livre; e carência dos possíveis usos deste tempo livre.
Me vi sem conseguir entender como aproveitar o dia. Estava sempre
alerta. O excesso de espaço e de ar agradável me mostraram o quanto eu me
sentia segura ao redor de livros e embaixo do ar-condicionado. Cada vez menos
humana.
Esta sociedade tende a atomizar as pessoas convertendo-as em
consumidores isolados, e a impedir toda comunicação. A vida quotidiana se
converte em vida privada, domínio da separação e do espetáculo (...) as novas
cidades de nossos dias demonstram claramente a tendência totalitária que
caracteriza a organização da vida pelo capitalismo moderno: nelas os indivíduos
isolados (isolados geralmente na estrutura da célula familiar) contemplam como
se reduz a sua vida à pura trivialidade do repetitivo, diante da absorção
obrigatória de um espetáculo igualmente repetitivo.
DEBORD, Guy. Perspectivas da transformação consciente
da vida quotidiana. 1961. DEWEY,
J. Reconstrução em filosofia. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nacional, 1959.
quinta-feira, 15 de agosto de 2013
Praça da República- Processos colaborativos de pesquisa em práticas estéticas nos espaços urbanos.
Ana
Lia Rodrigues
Como parte da disciplina Tópicos Especiais
em Poéticas Contemporâneas II: Atrações Temporárias foi proposta aos alunos
pela professora Maria Thereza Azevedo a vivência de uma intervenção urbana. Tal
proposta presumia trabalhar com processos colaborativos e induz à observação de
práticas estéticas pela cidade, a partir de situações não convencionais criadas
em ambiente urbano.
Apropriar-se de espaços, criar situações,
mudar o curso do caminhar e do olhar era o que sugeria Guy Debord com a criação
do Movimento Situacionista (1958). As derivas são, para os situacionistas,
possibilidades de experimentação, tornar o cotidiano urbano – lugar de fragmentação
e banalidade – em um espaço da
revelação, da crítica e da transformação. (SILVA, 2008).
A teoria urbana
situacionista seria então baseada na ideia de construção de situações. O
cotidiano seria a fronteira onde nasceria a alienação, mas também poderia
crescer a participação, assim como o lazer seria o tempo livre para o prazer.
(...) Para tentar chegar a essa construção total de um ambiente, os
situacionistas criaram um procedimento ou método, a psicogeografia e uma
prática ou técnica, a deriva, que estavam diretamente relacionados. A
psicogeografia estudava o ambiente urbano, sobretudo os espaços públicos,
através das derivas, e tentava mapear os diversos comportamentos afetivos
diante dessa ação, basicamente do caminhar sem rumo na cidade. (JACQUES, 2003).
Inspirados em Debord, nos empenhamos em realizar
a experiência da intervenção e, contudo, dispor uma nova estética na cidade. O
Coletivo à Deriva, desta vez sendo estrelado pelos alunos de mestrado turma
2013, sugere questionamento do cotidiano urbano em uma praça da cidade. Ao nos
apropriarmos da Praça da República em Cuiabá, convidamos os transeuntes a se
renderem a uma pausa para cochilo e repouso. Instalamos a República do Cochilo.
Se a vida é construída de sonhos, sono é
uma intervenção nos sonhos da vida. O que fazemos quando dormimos e repousamos
nosso corpo? Seria revitalizar a máquina realizadora dos nossos sonhos? Alimentar os interespaços que impulsionam à
atuação no dia-a-dia? Seria se ausentar por um momento do estado de vigília e
deixar a mente à deriva?
Figura 01.
Flagrante da intervenção: um participante atuando em momento de cochilo.
Foto: Eveline
Teixeira
A
construção poética desta intervenção artística aconteceu a partir de acordos
coletivos. Embasados em levantamento teórico sobre o situacionismo e
intervenções urbanas, partimos individualmente para observação da cidade,
Cuiabá, a fim de definir um local e planejarmos a ação, uma interferência na
cidade que fosse significativa. Este significado passa pela intenção subjetiva
de cada pessoa envolvida neste grupo resultando em uma criação coletiva.
Este processo de criação possibilita cada um do grupo ter voz,
potencializando a ação a partir de uma rede de sujeitos ativos, criando uma
rede rizomática:
O rizoma opera por variação, por
expansão, conquista, captura, Mapa que deve ser produzido, construído, que pode
ser extraído, conectado, reversível, modificável com múltiplas entradas e
saídas com suas próprias linhas de percurso. Sistema sem centro, sem
hierarquia, sem significado, definida somente pela circulação de estados. (DELEUZE
e GUATTARI, 1997)
Figura 02: Detalhe de uma sombrinha usada na
intervenção. Foto: Ana Lia
Assim, sem hierarquia,
mas em comum acordo, definimos a Praça da República como um dos pontos para
nossa intervenção. A partir de organização prévia, definimos as ações, os materiais
que seriam utilizados em nosso processo. No dia 05 de julho de 2013, sexta- feira, dia
ensolarado e quente, o clima mais habitual de Cuiabá, estávamos na Praça da
República, centro da cidade. Pufes e colchões
infláveis foram cheios e espalhamos pela praça, estendemos telas e penduramos sombrinhas,
objeto símbolo do Coletivo à Deriva. Assim, criávamos uma nova estética para a
praça. Nosso estar na praça mais parecia uma instalação com seus coloridos
pendurados em varais e redes. Estávamos
modificando o ambiente realizando uma interferência estética.
Figura
03. Coloridos pendurados nos varais da Praça.
Andrea Bertoletti, ao analisar a
Arte Relacional (BOURRIAUD, 2009), discorre sobre o pensamento de Bourriaud:
Segundo
Bourriad (2009), arte relacional mantém como alicerce teórico a esfera das
interações humanas e seu contexto social, cujo substrato é calcado pela
intersubjetividade, e seu cerne traduz o “estar junto, ‘encontro’ entre o
observador e o quadro, a elaboração coletiva do sentido” (Bourriaud, 2009, p.21).(...)
Porém, num sentido mais amplo, a estética relacional é representada como um
interstício social. Interstício como um espaço de relações humanas que sugere
possibilidades de troca além da instituída pelo sistema. (BERTOLETTI, 2011).
Portanto, estávamos ali realizando nossa
arte para o público, mas acredito que nossa intenção era mais do que atingir o
outro. Éramos agentes ativos e passivos, atores e espectadores da nossa própria
intervenção, pois não havia comandos ou rótulos que nos direcionasse o
pensamento para a busca de determinado resultado. A proposta era estarmos à
deriva enquanto pesquisadores de teorias e práticas das poéticas contemporâneas.
Sem comandos, sem horário marcado. O
inusitado aconteceu. Estudantes, crianças, moradores de rua, cidadãos comuns, deitaram
e descansaram nos colchões e nas redes que penduramos nas árvores. As crianças
vinham ouvir histórias, moradores de rua vinham contar suas histórias. Aproximavam-se
de nós como se estivéssemos emanando sensação de acolhimento. A praça estava envolvida em uma teia de
intersubjetividade que se expandia à medida que as pessoas se aproximavam,
compartilhando suas histórias e seus momentos.
Figura 04: Crianças ouvem histórias sentadas
nos colchões infláveis. Foto: Ana Lia
Ativamos um “falatório” ou “banca dos
desejos” para dar oportunidade para que as pessoas escrevessem o que quisessem
e pendurassem no varal que armamos, ou ainda, jogar em uma bacia com água para
lavar aquilo que não quisesse mais. A câmera da professora Maria Thereza também
estava aberta para ouvir e ver quem quisesse falar. Com essas vozes, incluímos novas narrativas ao
nosso processo artístico de caráter relacional. Estávamos propondo relações
entre as pessoas e o mundo por intermédio de objetos estéticos.
A essência da
prática artística residiria, assim, na invenção de relações entre sujeitos,
cada obra de arte particular seria a proposta de habitar um mundo em comum,
enquanto o trabalho de cada artista comporia um feixe de relações com o mundo,
que geraria outras relações, e assim por diante, até o infinito. (BOURRIAUD,
2009, p. 30-31).
A praça, por si só, já representa um lugar
repleto de significado de dimensões históricas e culturais , serve de abrigo,
de encontro e desencontros. Durante o tempo da intervenção, esse espaço ficou
tomado por tranversalidades nas
relações. Histórias reveladas e expostas nos varais nos contaminavam. Os
casais, a mulher que passou mal, um homem que cheirava cola, entre outras
pessoas e coisas que aconteceram, serviram de material de pesquisa sobre os processos humanos e as
poéticas artísticas que sugerem práticas estéticas na cidade. As situações que
criamos levou ao encontro, à colaboração e a interrelação.
Figura 05: Varal dos desejos. Foto: Eveline Teixeira.
Figura 06: Bacia
para lavar o que não se deseja. Foto: Eveline Teixeira
Figura07:
Professora Maria Thereza, sua câmera e homem dando seu depoimento. Foto: Ana
Lia
A
estética relacional de Borriaud constitui uma teoria em que “a obra de arte não
detém o monopólio da forma; ela é apenas um subconjunto na totalidade das
formas existentes” (BORRIAUD, 2009,p.26).
(...) além do
caráter-relacional intrínseco da obra de arte, as figuras de referência da
esfera das relações humanas agora se tornaram ‘formas’ integralmente
artísticas: assim, as reuniões, os encontros, as manifestações, os diferentes
tipos de colaboração entre as pessoas, os jogos, as festas, os locais de
convívio, em suma, todos os modos de contato e de invenção de relações
representam hoje objetos estéticos passíveis de análise enquanto tais. (BOURRIAUD,
2009,p.40).
Figura
08: Estudantes em Intervenção na Praça da República. Foto: Eveline Teixeira.
Felix Guattari (1992) afirma que o
porvir da humanidade parece inseparável do devir humano (p.170), pois o planeta
está envolvido em um rizoma multipolar urbano e são as cidades, imensas
máquinas produtoras de subjetividade individual e coletiva. (p172).
Figura 09: Varal
de desejos. Foto: Ana Lia.
Pensar, vivenciar, observar, intervir nas
cidades é motivo para transbordamentos e inovações de caráter artístico entre
outras dimensões do universo humano. Um dos desdobramentos desta intervenção,
resultou na construção de um blog, operando como uma praça virtual que
concentra os relatos das experiências de cada um dos pesquisadores, que, assim como a Praça da Republica, cria uma
rede de espaços subjetivos que fomentam a arte relacional dentro do processo colaborativo
de construção de poéticas artísticas.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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metodologia de apreensão dos usos e apropriações dos espaços da cidade.
Visões Urbanas - Cadernos PPG-AU/FAUFBA, Vol. V, Número Especial, 2008.
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GUATTARI, F. Restauração da Cidade Subjetiva. In:
_____________. Caosmose – um novo
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Paulo: Ed. 34. 1992, p. 169-179, 1992.
BERTOLETTI, Andrea. Arte Relacional e Ensino de Arte:
possibilidades e desafios. VI Ciclo de Investigações do PPGAV- UDESC, 2011.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI,
Felix. Mil Platôs. São Paulo:
Editora 34, 1997.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Tradução: Denise
Bottman. São Paulo: Martins, 2009.
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