sábado, 20 de setembro de 2014

Além das cercas brancas...

Carlos Benedito Pinto 



O cerceamento de nossos desejos dados pelos “bons” hábitos e costumes deixa-nos seguros de nosso correto agir, expressar e relacionar. Os rituais diários que seguimos sem pestanejar, intimidados pela severa condenação da receada alcunha da anormalidade, guiam e delimitam nosso espaço. Mesmo que os nossos cotidianos desejos díspares nos impilam ao devaneio diário, como uma chave, uma escapatória fugaz desta prisão. Vivemos o horário escolar, o ônibus, o semáforo, o parto cesariano, a hora-extra entre outros ‘benefícios’ da organização que nos permitem viver em uma sociedade compartimentada, cronometrada. São, dentre muitos exemplos, elementos de controle já cimentados no nosso cotidiano.
A irregularidade do comportamento tornou-nos um dos mais atemorizantes deslizes num meio social ordeiro. A despeito disso somos impelidos a envilecer  a existência dos considerados  marginalizados, que vivem num mundo do horário e pensar não-linear, talvez da tentativa de fuga do controle - das senhas e números, da discussão do senso comum e da moral. Aparentam-nos, todos esses pitorescos  “malucos”,  não terem razão prática para existirem. E não me refiro a um morador de rua que fora excluído á força, mas sim dos que decidiram fugir por conta própria.  Vendo-os de longe perambulando ou fazendo artesanato, malabarismo, intervenções fugazes, menosprezando, desregulando, de alguma forma, nossos regulares e tão eficazes cronômetros, causa-nos estranheza e, em alguns momentos, até mal estar.  O que pensar a respeito dos hippies fazendo suas peças artesanais, malabaristas, artistas de rua, performers, ou  um alucinado intervindo na paisagem da praça, longe da casinha mediana de ‘subúrbio-tipo-americano’, de gramado, cercas brancas e um varal com lençóis alvos ? Seriam senhores aposentados ocupando a calçada movimentada, longe da obrigação do relógio de ponto, suspirando um outrora glorioso, uma afronta ao nosso viver apressado, pragmático e pontual?
Este preâmbulo desordenado é uma tentativa de afastamento subjetivo das sensações que nos foram presenteadas no trabalho de intervenção urbana  intitulada “República do Cochilo” feita pelo Coletivo á Deriva como parte do trabalho  da disciplina “Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas II” do curso de Mestrado da ECCO ( Estudos de Cultura Contemporânea) na UFMT, ministrada pela professora Dra.  Maria Thereza Azevedo. Proposta de trabalho que nos permitiu reflexões das propostas  de intervenções urbanas de Guy Debort, com a articulação do Movimento Situacionista. Segundo Paola Berenstein Jacques 1 “O pensamento situacionista, e principalmente sua crítica ao urbanismo enquanto disciplina, poderia ser visto hoje, pelo próprio « campo » do urbanismo, como um convite à reflexão, à auto-crítica e ao debate. Uma proposta para se pensar agora, em conjunto com todos os atores sociais urbanos, sobre o futuro das cidades existentes e a construção das cidades do futuro.”  E , fazendo uma articulação Johan Huizinga, no seu ensaio sobre a função do jogo, é um pensamento  e ação artística interventiva que questiona o que seria considerada a transição do  chamado “homo faber” para o “homo luden”.
O itinerário da nossa cartografia subjetiva partiu do chamado senadinho, residência do falecido advogado Oriente Tenuta Filho, situado ao lado da Prefeitura Municipal de Cuiabá, na qual são feitas reuniões diárias onde senhores aposentados discutem desde política até futebol. Um festivo alvoroço de pessoas vividas, relembrando, questionado, declamando lindamente Castro Alves em plenos pulmões, encheu de vida as nossas percepções de memórias do que é chamado cuiabania.

Partimos para a Praça da Republica para intervenção em si. Chegando lá já havia alguém interferindo no estado de espírito do ambiente, um senhor tinha se instalado no lado leste da praça e com seus apetrechos: ‘copo’ feita da base de garrafa pet com areia, pedra, dinheiro, etc, colocados sistematicamente na borda do canteiro; sapato amarrado no poste, alguns pedaços de caixa de papelão espalhados pelo chão. Havia uma inexplicável agressividade por parte desde senhor em relação aos transeuntes, pois o mesmo se incomodava com as pessoas que transitavam no espaço que ele estava ocupando e até mesmo agredia alguns. E, por conta dessa atitude, a polícia foi acionada e o instalado teve que deixar o lugar público.
            Esse episódio em especial nos fez refletir a ética do artista ou coletivo em intervenções urbanas. Obviamente  aquele senhor em seu mundo particular, preso em suas particularidades subjetivas, desconectado do que consideramos realidade, não apresentava uma proposta de intervenção ou instalação clara. Mas é latente que havia um incomodo algo que o fez se deslocar até aquele espaço público e se expor de alguma forma. Apesar de nossa racionalidade acadêmica, em certa medida, desdenhar tal ação.
Executamos, com muito êxito, a nossa intervenção planejada, estudada, organizada e muito bem recebida, com a participação de várias pessoas que passavam e/ou permaneciam na praça durante a nossa estada.
Não quero suscitar uma comparação assertiva entre a semelhança pragmática, ‘racional’ da nossa intervenção com a deste senhor, muito menos aviltar a intervenção muito bem sucedida do nosso coletivo, e sim refletir a respeito da impressão que nos chamou a ocupação de espaços públicos. Da quebra do ritmo imposto em nossa vida cotidiana, ‘normal’. Do desmoronamento da sintaxe das ruas ordeiras baseadas em nossa imaginação de subúrbios de classe média ou dos departamentos cheios de uma plácida disposição. Pois, como já me mencionei anteriormente,  trata-se aqui de um texto de afastamento, de estranhamento, do desfocar do olhar.

Olho com certa admiração aquele sujeito maltrapilho que se mostrou desesperado, além da cômoda bolha das cercas brancas.

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