Bruna Mendes de Fava
A minha intervenção foi a intervenção em mim. Foi com grande
surpresa que acordei no dia cinco de julho, as sete da manhã, com uma certa tensão.
Até algumas semanas anteriores a essa data, estava empolgada com o fato de
realizarmos a intervenção urbana no centro da cidade, envolvida com as
conversas e com os textos lidos em sala de aula, que falavam do vivenciar a
cidade sem um objetivo específico a atingir.
Queria vivenciar o que Guy Debord (1958) cita das experiência à
deriva, deslocar-me durante nossa intervenção sem saber o que realmente iria
fazer, deixar-me levar pelas solicitações do próprio terreno que me esperava,
além dos encontros que a ele correspondiam.
A deriva, em seu caráter unitário, compreende o deixar levar-se
em sua contradição necessária: o domínio das variáveis psicogeográficas pelo
conhecimento e o cálculo de suas possibilidades. Concluído este último aspecto,
os dados postos em evidência pela ecologia, ainda sendo a priori muito limitado
o espaço social que esta ciência propõe estudar, não deixam de ser úteis para
apoiar o pensamento psicogeográfico (DEBORD, 1958, p.1).
Porém, no dia tão
esperado, resisti no primeiro momento à deixar-me levar pela experiência, pois
comecei a racionalizar e me preocupar com o que iria acontecer. Cheguei um
pouco nervosa a Praça Alencastro, nosso ponto de encontro, talvez porque
realizaria algo totalmente novo, meu primeiro contato com esse tipo de atuação
ocorreu em sala de aula, na disciplina de poéticas contemporâneas.
Comecei a pensar que precisava criar um objetivo para aquela
intervenção, e que se saísse a deriva talvez no final não teria encontrado um
sentido em tudo o que eu iria viver e até então eu queria um sentido. E agora?
Não tinha pensado em nada. Achei que tinha me entregado ao espírito da deriva,
mas me enganei. O que analisar? Qual será meu foco? Meu olhar? Pensei em analisar
as pessoas, suas reações diante da intervenção, ou seria melhor outra ocorrência?
Estava desassossegada.
Fui a segunda estudante a chegar na praça, e comecei a analisar
aquele lugar e fui relaxando. Já tinha morado no prédio em frente, o Maria
Joaquina, e pertencido aquele ambiente de algum modo. O pessoal foi chegando,
fomos pegando os materiais necessários para o dia, fomos abrindo as sombrinhas
coloridas e assim, parei totalmente de
analisar a intervenção.
Entrei na experiência de modo que não lembro de ter
racionalizado mais nada. Nosso pequeno trajeto inicial com as sombrinhas ao
Senadinho, foi já interessante, os transeuntes todos nos olhando curiosos,
ainda no espírito crítico das manifestações ocorridas durante o mês, três pessoas
nos perguntaram curiosas O que estávamos manifestando? E eu respondia a
proposta das sombrinhas: queremos mais sombra na cidade.
No Senadinho, local que pensei que íamos ter dificuldade para
inserirmo-nos foi também surpreendente, e mais uma vez me vi conversando com os
membros do grupo deles, sem me colocar em um papel observador, mas sim ativo
diante da experiência. Conversei com alguns senhores quanto as famílias
cuiabanas, a respeito do que estavam achando das manifestações que vinham
ocorrendo na cidade, e nas mudanças do povo cuiabano e da própria cidade nos
últimos anos.
Figura 1- Senadinho Foto- Bruna Fava |
Figura 2- Quadro no Senadinho Foto- Bruna Fava |
Depois de vivido essa experiência, partimos para a praça da
república onde, parafraseando o que
acontece nos textos de Clarice Lispector, ocorreu a “epifania do meu conto”, o momento de
revelação e profunda imersão no que tive de mais interessante neste dia
pitoresco.
Quando chegamos a praça, começamos a organizar os materiais que
iríamos utilizar. Distribuímos redes, colchões e pufes de forma harmônica pelo
local e isso já começou a chamar a atenção de quem passava por ali. A intenção era transformar a praça pública, que tem sido
utilizada geralmente como local de conexão e passagem dos transeuntes, em um
lugar agregador, de vivência e convivência.
Figura 3- República do Cochilo Foto- Bruna Fava |
A república do cochilo começou a se instaurar, estudantes,
trabalhadores e crianças se interessaram pelo local e começaram a participar
daquele ambiente. O estranhamento inicial ocorria, e diversas perguntas a
respeito do que significava tudo aquilo surgiam. Da onde vocês são? Qual é o
objetivo disso? Posso me deitar? E assim a praça começou a ser vivenciada.
As pessoas na praça começaram a usufruir da experiência, depois de algum tempo, resolvi deitar em um
colchão também. Enquanto o ambiente era constituído, o processo contrário
acontecia comigo. Nunca tinha pensado em viver uma experiência como esta, senti
que algo estava acontecendo em mim, uma mudança de perspectiva me tomava diante
da imersão naquele processo, é como se
uma mudança estrutural me agarrasse, me colocando diante de uma mudança de
valores e princípios. O que é certo? E neste momento voltei fazer análises, mas
não do que estava acontecendo no
ambiente da intervenção, mas da
intervenção em mim.
Posso dizer que me inseri no contexto da nova criação do meu
corpo-em-arte, que é o corpo- subjétil, citado por Ferracini (2007), em que um
outro tempo e espaço me pareciam
atravessar em uma nova intensidade. Mas como acontece essa recriação? Como
recriar um outro tempo e espaço? Ferracini questiona e nos situa nestas
questões:
Seria uma mera metáfora? Obviamente, quando dizemos que o
corpo-subjétil cria um outro tempo e um outro espaço não queremos dizer que ele
tem a capacidade de diminuir ou acelerar a pulsação temporal no seu relógio de
pulso ou que o espaço ao redor desse corpo-subjétil se expanda ou se comprima
mecanicamente transgredindo as funções matemáticas espaciais e físicas. A arte,
o corpo-subjétil, não age nas leis da física clássica, mas age nas percepções e
afetações sensoriais. Mas poderíamos dizer aqui que, se a arte, o
corpo-subjétil, age nas percepções e afetações sensoriais, ela ainda estaria
conectada ao tempo-espaço clássico, já que as macropercepções, em última
instância, são leituras de sensações que “habitam” esse tempo-espaço clássico.
Portanto, ao adentrarmos na tentativa de realização de um outro tempo-espaço no
corpo-subjétil não discursamos nem no território do tempo-espaço mecânico, nem
no território dessas macropercepções sensoriais (FERRACINI, 2007, p.1)
Além da mudança do tempo e do espaço, vi esvair em mim não sei
se lentamente ou rapidamente, o meu ego e a racionalidade. Um turbilhão de
questões me atravessavam a todo momento. Questionava-me quanto a minha
liberdade e a do outro, o que realmente importava? Foi uma sensação boa, como
se eu pela primeira vez me permitisse sentir o novo, o diferente, o impossível.
Minha perspectiva de
tempo mudou de tal maneira que não era mais 14:00, 15:00 ou 16:00 horas, não
era nem tarde. A sombra da praça me ajudou nesse sentido, quando vi já
estávamos recolhendo todo material da praça e indo embora.
O espaço então mudou toda sua perspectiva, eu via tudo e todos
naquela praça como uma imensidão e importância jamais vista, tudo e todos
pareciam estar ali com a obrigação e intenção de me atravessar, de me
desconstruir. As várias estruturas que
eram até então estabelecidas dentro de mim, como minha vergonha, liberdade,
felicidade, respeito, a partir daquele momento passaram a ser questionadas. Mas
no que consiste essa desconstrução? Como ela tomou essa proporção em mim?
Derrida (2001), um dos percursores deste conceito, cita que a
desconstrução marca o afastamento entre a inversão que coloca na posição
inferior aquilo que estava na posição superior e também a emergência repentina de um conceito novo que não era compreendido
anteriormente.
Dardeau
(2011) cita a estratégia geral da desconstrução de Derrida, em que é
constituída de dois momentos ou de um duplo gesto, sendo os da inversão e o do deslocamento, onde a
hierarquia conceitual metafísica é invertida, e assim tudo que é subordinado,
considerado subalterno é tido como especial.
Isso
é realmente o que aconteceu comigo na minha experiência, em que tudo que
considerava menos relevante, subalterno na hierarquia dos meus valores, ou até
mesmo, nem considerava ou imaginava, é visto com outros olhos, tudo foi
deslocado e invertido dentro de mim.
Derrida,
acredita que esta desconstrução consiste em deslocar os termos de uma dada
oposição conceitual para outro local, e portanto o filósofo inicia admitindo os
quase-conceitos ou indecidíveis, em lugar dos conceitos “tranqüilizantes”
oferecidos pela metafísica (DARDEAU, 2011).
Deitada, olhado a igreja
Matriz na vertical, encarei minhas ações
até aquele momento e o quanto a sociedade e minha cultura me limitavam a
sentir algo parecido com aquela sensação. As pessoas deitadas ao meu lado nos
colchões, moradores de rua, estudantes, crianças e meus colegas, assim tão
próximos de mim, numa mesma condição igualitária e democrática, usufruindo do
mesmo ambiente, do mesmo tipo de colchão inflável azul, me fizeram lançar mão,
naquele momento, das minhas hierarquias
idealizadas, me quebravam a soberba e me traziam um sabor de humildade, jamais
sentido anteriormente.
Figura 4- Vivencência Foto: Eveline Teixeira |
Deitar na praça da República me fez repensar na solidariedade,
na preocupação com os marginalizados, na importância de dar voz, oportunidade
aos que não são ouvidos. Isso tudo só foi possível porque estava na
condição que me colocava em um ambiente não
convencional e quebrava meus paradigmas,
me permitindo e me obrigando a enxergar outra perspectiva, outro espaço. Por
estar em posição literal no espaço, mais abaixo que os que estavam em pé, em um
momento, pareceu que estava assistindo um filme de ficção, deitada em um sofá: De um lado meus colegas ouvindo o delírio de
um morador de rua que se drogava com cola, dando-lhe a atenção de quem
realmente merecia ser ouvido e de outro lado, um senhor em pé, sendo filmado pela professora,
que proporcionou a ele toda a liberdade para se expressar, ouvindo e filmando pacientemente como se fosse um dever,
uma necessidade naquele momento de deixá-lo falar.
Figura 5- Colegas e morador de rua Foto- Eveline Teixeira |
Consegui depois de ter enxergado e analisado minha desconstrução relaxar e dormir no colchão na praça. Sinto
que este ato expõe minha aceitação daquela nova condição que me atravessava, depois
de uma certa resistência inicial do primeiro estranhamento, de desmistificar as
sensações e me colocar em um lugar mais democrático verdadeiramente, diante
daqueles que deitavam a minha volta, consegui aceitar a desconstrução que
ocorrera, o ato de dormir profundamente, me fez acordar renovada e aceitando
minha nova construção.
Desconstruir uma oposição é mostrar que ela não é natural e nem
inevitável mas uma construção, produzida por discursos que se apóiam nela, e
mostrar que ela é uma construção num trabalho de desconstrução que busca
desmantelá-la e reinscrevê-la - isto é, não destruí-la mas dar-lhe uma
estrutura e funcionamento diferentes (Culler, 1999, p.122).
Figura 6- Cochilo Foto- Eveline Teixeira |
REFERÊNCIAS
CULLER, J. Sobre a Desconstrução: teoria e
crítica do pós-estruturalismo. Trad. Patrícia Burrowes. Rio de Janeiro: Record;
Rosa dos Tempos, 1997.
DARDEAU, D. Jacques
Derrida: da linguagem à escritura, da escritura como transbordamento
Ensaios Filosóficos, Volume III - abril/2011.
DEBORD, G. Teoria da Deriva. Revista
Internacional Situacionista, nº 2, 1958.
DERRIDA, J. Posições.
Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2001.
FERRACINI, R. O corpo-subjétil e as micropercepções: um espaço-tempo elementar.
In Tempo e Performance. MEDEIROS, Maria Beatriz de,MONTEIRO, Mariana F. M. e
MATSUMOTO, Roberta K.(org). Brasília:Editora da Pós-graduação em Artes da
Universidade de Brasília, 2007.
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