Eveline Teixeira Baptistella
O menino cruza a Praça da República de
mãos dadas com a mãe. Os dois estão
passando pela República do Cochilo, intervenção urbana desenvolvida na
disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas II: Atrações Temporárias: práticas estéticas em espaços urbanos, ministrada pela
Professora Doutora Maria Thereza Azevedo no Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT. A praça está tomada por varais,
cartazes, colchões de ar, pufes, redes e sombrinhas. Ele diminui o passo, olha ao redor e pede:
“Mãe,
por favor, deixa eu deitar no colchão? Eu quero te mostrar uma coisa muito
boa.”
“O
que?”
“É
bom deitar assim e ficar olhando para as árvores, as folhas balançando.”
Foto 1 - O menino e as árvores.
As mãos se soltam e ele saca um bombom
do bolso, coloca o chinelo de lado e se deita (foto 1). Sorridente, come o doce
enquanto observa o movimento das copas das árvores, esquecido de tudo ao redor
(fotos 2 e 3). Do outro lado da Praça,
quase ao mesmo tempo, uma menina brinca de bailarina sob sombra de um ipê centenário
(foto 4). Por alguns minutos, examina o tronco. Desliza as mãos pela madeira (foto 5). Cuiabá,
conhecida como cidade verde, já não é mais tão arborizada. Um dos legados da
Copa do Mundo de 2014 é a substituição de centenas de árvores por peças de
concreto: viadutos, trincheiras e estruturas para a passagem do Veículo Leve
sobre Trilhos.
Para Costa (2012), estas duas crianças
são nativas digitais. Elas dominam as tecnologias
intuitivamente, vivem confortavelmente no ambiente virtual, são o retrato de um
novo tempo: a pós modernidade. Mas naquele instante, na Praça, revivem uma cena
que poderia ter sido protagonizada por seus pais e avós: momentos de pleno
envolvimento e intimidade com a natureza.
Uma experiência que ainda não pode ser reproduzida em sua totalidade pelos
computadores e que exige duas condições cada vez mais raras para o ser humano: tempo e espaço. Tempo para brincar, se
distrair, tempo para não produzir. Falta espaço também, espaço para crianças e
árvores. Ela se manifesta nas moradias,
cada vez menores, no trânsito caótico, nas construções que se expandem por
todos os cantos possíveis, avançando sobre as áreas antes rurais, que acabam
sendo incorporadas à zona urbana. Os encontros com a natureza vão se tornando
raros, mas nem sempre menos significativos.
Na hora de retomar o caminho de casa,
o menino disse à mãe:
“A
gente pode voltar no sábado para fazer isso de novo?”
Mesmo que as instâncias de convivência
com a natureza sejam gradativamente reduzidas, Wilson (2003) diz que a inclinação
demonstrada pelo menino é intrínseca a nossa espécie. Ele chama o vínculo entre seres humanos e as
outras formas de vida de biofilia “... que eu vou ser corajoso de definir como
a tendência inata de se concentrar na vida e nos processos naturais” (WILSON,
2003, p. 22).[1]
Ele afirma que as crianças demonstram naturalmente este comportamento, que
alinha instinto e razão:
Na infância nos concentramos alegremente em nós mesmos e nos outros organismos. Aprendemos a distinguir os vivos dos inanimados e nos movemos em direção à vida como mariposas para a uma lâmpada na varanda. (...) Numa dimensão ainda subvalorizada pela filosofia e a religião, nossa existência depende dessa propensão... (WILSON, 2003, p. 26).2
A biofilia é, em parte,
instinto porque surge naturalmente nos seres humanos, mesmo que ao longo da
vida deixe de ser evidenciada. Mas é também razão porque a intrincada relação
entre todas as formas de vida é o que garante a manutenção das condições de
sobrevivência no Planeta. Uma teia que se expôs totalmente a partir dos
impactos da crise ecológica, que começaram a ser revelados na década de 60 e
que ainda estão longe de cessar. É sabido que os desequilíbrios ecológicos
provocados pelo uso abusivo dos recursos naturais pode provocar o fim da vida
na terra. Para Serres (1990), o homem contemporâneo deveria rever ações e mudar
suas atitudes em relação à natureza. “Se considerarmos nossas ações inocentes e
ganharmos, não ganharemos nada, a história avançará, como sempre; mas se
perdermos, perdemos tudo, sem estarmos preparados para qualquer para qualquer
possível catástrofe” (SERRES, 2010, p.17).
Os benefícios de uma
relação mais harmônica entre homem e natureza – pela qual Serres anseia (2010)
– são cristalinos na praça da República.
A sombra das árvores transforma o espaço num local atípico no centro de
Cuiabá. Ali, idosos se reúnem para conversar, pessoas descansam com suas
sacolas de compra e funcionários das lojas ao redor repousam depois do
almoço. Muitos casais de namorados e estudantes
matando aula também transformam a praça num ponto de parada.
Foto 5: Biofilia, para Wilson, seria um sentimento inato que nos conecta às todas as outras formas de vida.
O clima mais fresco e a
proteção acústica oferecidos pelas árvores são alguns dos elementos que fazem
com que o tempo pareça passar de forma diferente na Praça da República. Como se
fosse uma realidade paralela dentro da qual é possível observar a correria do
Centro sem ser contaminado. Ferracini [entre
206 e 2013] fala que a arte –
especialmente a dança, o teatro e a performance – talvez recriem um outro tempo
e um outro espaço. Esse conceito pode ser emprestado à atmosfera da Praça, que
é mais tranquila que o entorno, promovendo convivências pouco usuais, que foram
intensificadas durante a República do Cochilo:
Essa
zona de tempo aiônico é uma zona de indeterminação, uma zona indiscernível no
qual pessoas, coisas, sensações, natureza atingem pontos de vizinhança comum,
“trocando-se” em suas diferenças. Trocam-se e geram experiências de
devires-moleculares e devires-imperceptíveis, Uma zona intensiva. Uma zona na
qual um homem e um animal, uma vespa e uma orquídea, não se transformam um no
outro, mas existe algo que se passa “entre” eles, de um para o outro: uma
micro-zono de sensações, de micro redimensionamentos na qual a vespa (por que
não?) para a ser o órgão sexual da orquídea. (FERRACINI, [entre 206 e 2013],
p.2)
Numa atividade de
observação da Praça, antes da intervenção, passei uma manhã no local. Uma das pessoas com quem conversei, um
senhor, me afirmou que as “moças como eu” evitavam passar por ali porque tinha
medo, mas que isso era bobagem, que ali não havia perigo. “Aqui, a gente usa a
praça junto”, ele afirmou. A intervenção explicitou essas relações. Empregados
de carteira assinada e camelôs dividiram os mesmos colchões. Estudantes de
pós-graduação ouviram as lições de moradores de rua. Aposentados e alunos de
ensino médio trocaram impressões sobre política. Crianças da geração digital transformaram
árvores em brinquedos, em ferramentas para sonha, negando por instantes a separação
entre homem e natureza.
Foto 2 - Visões diferentes versam sobre o futuro da humanidade. Em comum elas tem uma constatação: a forma de se relacionar com a natureza determinará o sucesso ou fracasso da espécie humana.
Uma separação sobre a qual
o Centro de Cuiabá tem muitas histórias para contar. Na Avenida da Prainha, que
pode ser vista da Praça da República, o calor sobe do asfalto em ondas visíveis
a olho nu. Quem precisa atravessar as pistas e rodagem procura, inutilmente,
uma sombra enquanto aguarda o semáforo fechar. Aquele cenário urbano esconde
uma natureza morta. Por baixo do asfalto corre um curso d´água que já foi cheio
de peixes e até mesmo navegável em alguns pontos. Como outras áreas úmidas, o
córrego da Prainha foi degradado ao ponto de ser considerado
“irrecuperável”. Como solução, foi
coberto em 1978. Como conta Alencastro (2006):
A
avenida Tenente Coronel Duarte esconde, sob seu leito, o antigo Córrego da
Prainha, cordão umbilical que alimentou de ouro e então nascente Arraial do
Cuiabá. Com sua nascente na Avenida Miguel Sutil, próximo à rodoviária, se
encontra hoje totalmente englobado na área urbana. Ainda no final de século
XIX, Rubens de Mendonça narra, em artigo da revista do Instituto Histórico e
Geográfico de Mato Grosso, expedição sua e de amigo, todos adolescentes, em
busca da nascente Prainha. Atravessa canalizado, mas a céu aberto, os bairros
do Araés e Baú, indo esconder-se, envergonhado de tanta sujeira, sob o leito da
avenida do CPA, na pracinha em frente a sede de Ministério Público Federal.
Após percorrer toda a área central, não lhe é mais permitido desaguar no Rio
Cuiabá; uma estação elevatória leva suas águas, todas contaminadas, para
tratamento antes de jogá-la no rio. (ALENCASTRO, 2006, p. 30)
As margens de rio são
chamadas de áreas úmidas, ecossistemas que estão na interface entre as áreas
permanentemente secas e molhadas. Entre elas estão charcos, brejos e mangues.
Segundo Mitsch e Gosselink (2007), as áreas úmidas podem ser consideradas
“rins” do meio ambiente, mas durante muito tempo foram consideradas locais
insalubres, especialmente pelas civilizações modernas ocidentais. No entanto,
hoje é travada uma luta para recuperá-las. Agora, sabe-se que as áreas úmidas
são essenciais para a manutenção de um bem indispensável à vida: a água. “Elas estabilizam os estoques de água, também
amenizam tanto enchentes quanto secas. Também foi descoberto que elas podem
purificar águas poluídas, proteger zonas costeiras e recarregar aquíferos
subterrâneos (MITSCH & GOSSELINK, 2007, p.46)”.
Mesmo todo o conhecimento
ecológico, no entanto, não é suficiente para mudar direções de forma efetiva. A realização de partidas da Copa de 2014 em
Cuiabá já tem como seu legado mais visível as obras estruturais, que prometem
melhorar o trânsito. No embalo desse
sonho, a cidade vive também um boom imobiliário, com a construção de dezenas de
edifícios, entre prédios de apartamentos, hotéis e salas comerciais. O impacto
da redução da vegetação, do avanço sobre áreas que antes eram parte do cerrado
e até mesmo sobre regiões de nascentes (caso do Centro Político Administrativo)
deve cobrar seu preço em alterações climáticas. Menos verde e mais emissões de
poluentes são receitas certas para eventos extremos, como secas prolongadas ou
tempestades violentas. As previsões do IPCC – Intergovernammental Panel on
Climate Change, inclusive, são de que tenhamos verões e invernos cada vez mais
rigorosos.
Foto 3 - O menino observa o movimento da copa das árvore se se distrai tentando avistar passarinhos entre as folhas.
Isolada da cidade que muda
a sua volta, a Praça da República permanece um espaço onde estes grandes problemas parecem não existir.
No qual ainda é possível se divertir com os passarinhos brincando na terra dos
canteiros. As duas crianças observadas durante a intervenção não sabem, mas já
há quem as coloque na categoria de uma praga que, desde a sua chegada à América
do Sul, dizimou 80% dos outros grandes mamíferos (GRAY, 2006). O ser humano é
classificado por Gray (2006) de homo
rapiens, “...uma espécie altamente inventiva que também é uma das mais
predadoras e destrutrivas” (GRAY, 2006, p. 20). Para ele, os netos destes dois meninos
viverão numa nova era:
Uma
população humana aproximando-se dos oito bilhões só ode ser mantida devastando
a Terra. Se habitats selvagens passarem a ser usados para cultivo humano e habitação, se as floretas
tropicais puderem ser transformadas em desertos verdes, se a engenharia
genética possibilitar colheitas cada vez mais abundantes a serem extraídas de
solos cada vez mais debilitados, então os humanos terão criado para si mesmos
uma nova era geológica, a Eremozóica, a Idade da Solidão, na qual pouco restará
sobre a Terra além deles mesmos e do meio ambiente protético que os mantém
vivos. (GRAY, 2006, p. 24)
Este seria o pior cenário
possível e descartaria completamente a hipótese da biofilia de Wilson. Se há, de fato, uma ligação inata entre homem
e natureza, ela pode trazer uma solução para o impasse ecológico que se
apresenta. Thomas (2010) afirma que o
predomínio do homem sobre a natureza foi a principal meta humana no início do
período moderno. Mas que esse processo
também promoveu um movimento contrário: o campo passou a ser considerado um
espaço idealizado de bem estar.
Como
observaria o crítico setecentista Hugh Blair, o gosto pela pastoral somente
surgiu depois de crescerem as cidades pois os homens não ansiaram pelo campo
enquanto viveram em termos de familiaridade cotidiana com ele. (THOMAS, 2010,
p.354)
Assim, a praça da
República, suas crianças e árvores são cenário e personagens de um drama que envolve
toda a humanidade. Ali, se reproduz uma situação comum a toda cidade: “... como
combinar as vantagens sociais e econômicas da cidade com o ambiente físico do
campo continua sendo um problema candente no planejamento urbano” (THOMAS,
2010, p. 359).
A maneira como
homens/animais/vegetais vão conviver no futuro, quais sobreviverão e quais
perecerão, será determinada por inúmeras escolhas individuais que, imbricadas,
vão formar os habitats das próximas gerações. À vista das crianças que brincam
com árvores poderemos sonhar com um futuro biófilo?
Foto 4 - Sob a sombra das árvores, o conforto para suportar o calor do centro de Cuiabá.
Referências:
ALENCASTRO,
Aníbal 2006. Cuiabá: de vila à metrópole
nascente. Cuiabá: Editora Entrelinhas.
FERRACINI,
R. [entre 206 e 2013]. O corpo-subjétil e as micropercepções – um
espaço-tempo elementar. Disponível em: http://webartes.dominiotemporario.com/performancecorpopolitica/textostempoperformance/renato%20ferracini.pdf [Acessado em 24 julho 2013]
GRAY, J.
2006. Cachorro de palha. São Paulo:
Record.
MITSCH,
J., GOSSELINK, J. 2007. Wetlands. Nova Jersey: John Wiley & Sons.
SERRES,
M. 1990. O contrato natural. Portugal: Instituto Piaget.
THOMAS,
K. 2010. O homem e o mundo natural:
mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras.
WILSON,
E. O. 2003. Biophilia: the human bond
with other species. [e-book] Cambridge: Harvard University Press. [Acessado
em 23 julho 2013]
[1] Tradução livre da autora. “...which I will be so bold
as to define as the innate tendency to focus on life and lifelike processes”.
[2} Tradução livre da autora. “From infancy we concentrate happily on ourselves and other organisms. We learn to distinguish life from the inanimate and move towart ir like moths to a porch light. (...) to na extent still undervalued in philosophy and religion, our existence dependes on this propensity...”
[2} Tradução livre da autora. “From infancy we concentrate happily on ourselves and other organisms. We learn to distinguish life from the inanimate and move towart ir like moths to a porch light. (...) to na extent still undervalued in philosophy and religion, our existence dependes on this propensity...”
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