Daniela Leite
No
dia 5 de julho de 2013 propomos instaurar a República
do Cochilo, intervenção urbana desenvolvida na disciplina Tópicos Especiais
em Poéticas Contemporâneas II, ministrada pela Professora Doutora Maria Thereza
Azevedo, no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da
UFMT. Esse processo iniciou com a proposta de uma situação previamente
combinada de preencher a praça com colchões, redes, puffs e cadeiras, bem como
uma “banca do desabafo” onde as pessoas poderiam escrever em papéis e pendurar
em varais aquilo que lhes ocorriam ou angustiavam naquele momento. Por ali
passamos 8 horas disponíveis aos encontros que aconteceriam no decorrer do dia na
Praça da República, centro de Cuiabá.
O que me interessa, dentre tantas
possibilidades, é pensar aspectos do encontro como experiência e como isso
reverbera no corpo. Como sugere o filósofo John Dewey (1959), caso a existência
mantivesse seu perfeito equilíbrio, frente à experiência do indivíduo, ele não
teria o que investigar, o que indagar e, consequentemente, o que conhecer. No
máximo, operaria um re-conhecer constante das coisas do mundo.
Por
conseguinte, Dewey defende que toda experiência autêntica, o que ele vai chamar
de “uma experiência”, têm caráter estético. Sendo a vida constituída de
interações (“viver é interagir”) e que é no seio das interações que ocorrem as
experiências, existe a possibilidade de que a vida esteja também repleta de
apreciação perceptiva e agradável, ou seja, de experiência estética.
Nesse
sentido, o antropólogo Victor Turner em Do
Ritual ao Teatro, entrelaça diferentes
linhas etimológicas do vocábulo “experiência” e esclarece: “(...) etimologicamente,
a palavra inclui os sentidos e riscos, perigo, prova, aprendizagem por
tentativa, rito de passagem”. Ou seja, uma experiência, por definição,
determina um antes e um depois, corpo pré e corpo pós-experiência. Uma
experiência é necessariamente transformadora, ou seja, um momento de trânsito
da forma, literalmente, uma trans-forma. E, assim, as escalas de transformação
são evidentemente variadas e relativas, pois oscilam entre um sopro e um
renascimento.
É
através dessas lentes que proponho olhar para essa intervenção. Guy Debord
(1961), acredita que a vida cotidiana está organizada dentro dos limites de uma
pobreza ruidosa. E, sobretudo, porque essa pobreza da vida cotidiana não tem
nada de acidental: o uso da vida cotidiana, no sentido de um consumo do tempo
vivido está condenado pelo reino da carência de tempo livre; e carência dos
possíveis usos deste tempo livre.
Para Suely Rolnik (1997), a
arte contemporânea leva cada vez mais a considerar e valorizar o processo, ou
seja, aquilo que acontece com (e no) artista em seu diálogo com o mundo,
afirmando a ideia de técnicas que não estão a serviço da construção ou criação
de um objeto e, sim, técnicas do sujeito, ou melhor, técnicas do si mesmo. Eis
que surge uma questão: será que o artista, ao mergulhar em processos de
criação, não está embarcando em um profundo processo de autoconhecimento, no
qual a técnica revela-se justamente como construção de novas subjetividades?
Trata-se do autoconhecimento enquanto técnica, mas que não
deve, nem se pode ficar ensimesmado, pois deve ocorrer em relação ao mundo. A
maneira através da qual o artista encaminha seu oficio, é, de fato, como ele
encaminha sua existência. Se no pensamento cartesiano a técnica estava fora,
como um objeto, hoje ela é a própria pessoa, a própria existência.
Nesse caso, é
necessário pensar como o corpo é inserido na existência já que o “corpo” é tema
e é meio. Assim, faz-se necessário perguntar: o que é corpo? Uma resposta dentre
muitas aponta Gilles Deleuze (2002) em Baruch Espinosa, o qual define corpo de
duas maneiras simultâneas: Primeira Proposição: Um corpo é um grupo infinito de
partículas relacionando-se por paragem e movimento. São as diferentes
velocidades relacionais entre as partículas, que definem as particularidades de
cada corpo. Portanto, o corpo não é definido por sua forma ou função. Forma e
funções orgânicas dependem de arranjos de velocidades e ralentações e não
vice-versa. Vale ressaltar que o corpo não está sendo aqui compreendido em
termos de forma, mas de forças interativas, como uma complexa relação entre
diversas velocidades, como uma elaborada interação entre partículas infinitas.
Então, corpo é
movimento e mobilidade. Segunda Proposição Espinosiana: o quê move o corpo ou
qual o princípio energético do corpo? Um corpo tem o poder de afetar e ser
afetado. Esta capacidade determinante também define as particularidades do
corpo: o quê ele afeta e como afeta, e pelo quê ele é afetado e como é afetado.
Nesse sentido, Espinosa não define corpo por sua forma ou função, nem como
substância ou sujeito. Corpos são vias, meios. Essas vias e meios são as
maneiras como o corpo é capaz de afetar e de ser afetado. O corpo é definido
pelos afetos que é capaz de gerar, gerir, receber e trocar.
Por isso, Espinosa
propõe que um corpo não é separável de suas relações com o mundo, posto que é
exatamente uma entidade relacional. O corpo espinosiano não está, e nunca
estará, completamente formado, posto que é permanentemente informado pelo
mundo, ou, parte de mundo que é. Inacabado, ou ainda, inacabável, provisório,
parcial, participante – está, incessantemente, não apenas se transformando, mas
sendo gerado. Tenho particular interesse na resposta espinosiana
pelo grau de abstração e a amplitude daí decorrente.
É
com esse corpo espinosiano que quero pensar os encontros que aconteceram na
praça; nesse corpo que está disponível para afetar e ser afetado para criar
zonas de micro elementos virtuais em relação dinâmica instável: atingir o encontro
por outro canal, procurar uma comunicação mais profunda. Como diz José Gil:
Deixar-se
“invadir”, “impregnar” pelo corpo significa principalmente entrar na zona das
pequenas percepções. A consciência vígil, clara e distinta, a consciência
intencional que visa o sentido do mundo e que delimita um campo de luz, deixa
de ser pregnantes em proveito das pequenas percepções e do seu movimento
crepuscular (GIL, 2004, 130).
Atingir
essa zona de turbulência, salientada
por Ferracini (2007) no que se refere ao espaço-tempo elementar, cujo
tempo-espaço tornam-se virtuais aiônicos e paradoxais de Escher. É necessário
lembrar que um dos temas recorrentes da obra de Escher é a sobreposição de
vários espaços sobre uma mesma imagem. Paradoxalmente, somos convidados a ver
dois mundos diferentes num único lugar e ao mesmo tempo. Desse modo, Escher
consegue juntar numa mesma imagem dois planos, e por vezes três, de forma tão
natural que o observador é levado a acreditar que essa imagem é possível, que é
possível abarcar dois ou três mundos ao mesmo tempo.
Os
encontros inusitados que aconteceram durante as 8 horas de experiência estética
na Praça da República não se localiza somente no meu corpo muscular, ou somente
na presença ou ausência dos signos que o meu corpo produziu, ou mesmo, apenas na
imaginação ou capacidade semiótica do outro. O encontro está na relação
dinâmica “entre” todos esses espaços e zonas. O encontro não é produção, mas
(in)produção, diluição, capacidade que esse corpo possui em se lançar, ele
mesmo e os outros, em zonas de contágio e turbulência, criando e gerando
encontros nessa zona virtual e intensiva.
Bibliografia
DEBORD, Guy. Perspectivas da transformação consciente da vida
quotidiana. 1961. DEWEY, J. Reconstrução em filosofia. Tradução
de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nacional, 1959.
DELEUZE, Gilles. Espinosa, filosofia prática. São Paulo:
Escuta, 2002
FERRACINI, Renato. O corpo-subjétil e as
micropercepções: um espaço-tempo elementar. Tempo e Performance. Brasília: Capes,
p. 111-120, 2007.
GIL, José.
Movimento total. O corpo e a dança.São Paulo: Iluminuras, 2004.
ROLNIK, Suely. Uma
insólita viagem à subjetividade. Cultura e subjetividade. Campinas, SP:
Papirus.[Links], 1997.
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