Intervenção Urbana: uma experiência
estética
Elizabete Angela Paro
A Intervenção Urbana não é apenas uma
manifestação artística, suas ideias vão além da arte, pois surge da necessidade
de se tratar da vida cotidiana como uma crítica ao funcionalismo moderno. No
entanto, enxergar a intervenção urbana como arte requer uma desconstrução, pois
é um tipo de arte que tem sua intenção no processo,
uma das principais ideias que inaugura a arte contemporânea. A arte aqui está
inserida em um contexto que torna a cidade um lugar de diálogo.
Sabemos que a arte sempre contribuiu
para uma mudança de percepção no modo de ver e sentir a vida. A intervenção
urbana, porém, coloca lentes em nossos olhos, fazendo com que enxerguemos
detalhes que nos passariam despercebidos e transforma o mesmo lugar em
diferentes lugares a cada vez que se olha. Portanto, se mudarmos a maneira de
olhar, um espaço só dura um instante.
O processo artístico na intervenção
urbana é um “deixar acontecer”, um exercício onde todo movimento gera ressonâncias,
desde que se esteja aberto para deixar acontecer, desconstruindo pequenas
coisas e apegos que cristalizam nosso cotidiano. Aceitar a deriva, o
inesperado, sem controle ou planejamento e sem a preocupação com a estética,
nem compromisso com o belo. Apenas afetar e ser afetado para produzir efeitos
inesperados.
Eram essas as intenções da “República do
Cochilo”, intervenção urbana realizada pela turma de Mestrado ECCO/2013. Uma
experiência pessoal, com a participação do coletivo.
A República do
Cochilo
O espaço escolhido para a realização de
uma intervenção urbana foi a Praça da
República, considerando a grande circulação de pessoas e sua importância
histórica. Interessou-nos, sobretudo, a pluralidade de sentidos produzidos à
margem dos processos culturais, políticos e sociais, e que são invisibilizados
pelo corre-corre do cotidiano.
Capturando os diversos sentidos que as
pessoas imprimem a um espaço público e os diferentes usos que fazem dele, nossa
intenção era tornar perceptível a diversidade de sons, cheiros, conversas,
árvores, cores, e tudo o que mantém vivo aquele espaço, desconstruindo a
passividade e a massificação dos comportamentos e criando situações para
desmontar o que se tornou comum e despercebido.
Nossa proposta teve como referência a IS
(Internacional Situacionista), formada por artistas, ativistas e pensadores
europeus como Guy Debord, na década de 50, com o intuito de estimular uma
participação mais ativa dos indivíduos na vida política, social e cultural,
indo contra a cultura do espetáculo da sociedade capitalista. Jacques se
utiliza das palavras de Debord quando diz que
Nossa ideia central é a
construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências
momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior.
Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois
grandes componentes que interagem continuamente: o cenário material da vida; e
os comportamentos que ele provoca e que o alteram. (JACQUES apud DEBORD, 2003, p. 21)
e conforme acreditavam, ainda hoje a cidade é vista
como “terreno de ação, local de produção de novas formas de intervenção e
transformação do cotidiano” (SILVA, 2008). Segundo a autora,
Estas práticas tinham como princípio
uma apropriação do espaço que ultrapassasse a lógica da definição de funções.
Para os situacionistas, era preciso explorar o espaço e suas possibilidades
contrapondo-se à passividade diante dos usos pré-definidos, decorrentes da
estruturação capitalista da cidade. (SILVA, 2008, s/p)
Esta
experiência permitiu-nos uma nova relação com a cidade através de um olhar
estético, pois a velocidade não nos permite viver a cidade, percebê-la. Foi
preciso “experimentar para compreender”, ver a cidade não como um lugar de
fluxo, mas um lugar de vivência.
O que vocês
fizeram com a minha praça?
Neste
momento, gostaria de relatar algumas situações que ilustram o efeito estético
da intervenção.
Na
ocasião em que estávamos preparando o ambiente com varais, colchonetes,
sombrinhas, cartazes, fomos surpreendidos com um senhor nos questionando: “O
que vocês fizeram com a minha praça?” A professora, mais que depressa,
sabiamente respondeu: “A praça é de todos!” Mas através deste questionamento,
pudemos perceber a relação daquele senhor e de muitos outros personagens que
ali passaram ou permaneceram por um determinado tempo,
com a praça em questão.
Percebemos
ainda que as redes, os colchonetes e as sombrinhas falavam por si, e as
subjetividades eram compartilhadas através da “ação” de “descansar”. Ali, os
papéis sociais não obedeciam a regras, e todos tinham voz e espaço. Estudantes,
garis, mães, viajantes, crianças, professores, vendedores, idosos, dependentes
químicos, adolescente grávida, sombrinhas, cartazes, redes, árvores, bancos,
colchões... tudo compondo o acolhimento da praça, sem hierarquias.
Nós,
mestrandos, éramos “ativos”, mas sentimos os efeitos da intervenção que
provocamos.
Há
quem pergunte: o que vocês mudaram na vida da cidade?
E, ousadamente,
eu respondo:
Mudamos,
primeiro, a nós mesmos, transformamos a Praça da República em um lugar de
diálogo, que sempre será diferente a cada vez que passarmos por ali.
Transformamos pessoas, ouvimos relatos, confidências, desejos, sonhos, e também
contamos histórias; destacamos cada árvore, cada cor, cada banco. Simplesmente
participando, por um instante, da vida da cidade, e interferindo nela e em seus
atores.
Bibliografia
BARBOSA, Eduardo Romero Lopes e PORTO FILHO, Gentil.
A Técnica do Détournement no Espaço Urbano: intervenções artísticas de Marcelo
Cidade e Gabriel e Tiago Primo. Disponível em: http://www.esocite.org.br/eventos/tecsoc2011/cd-anais/arquivos/pdfs/artigos/gt020-atecnica.pdf
COCCHIARALE, Fernando. A (outra) Arte Contemporânea
Brasileira: intervenções urbanas micropolíticas. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA/UFRJ. Rio
de Janeiro, 2004.
DEBORD, Guy e WOLMAN, Gil. Um guia prático para o
desvio. Artigo publicado no jornal surrealista belga Les Lèvres Nues, 1956.
Disponível em: http://www.imagomundi.com.br/cultura/desvio.pdf
DEBORD, Guy. Perspectivas da transformação
consciente da vida quotidiana. Disponível em: http://imagomundi.com.br/cultura/perspectivas_transformacao.pdf.
DEBORD, Guy. Teoria da Deriva. Revista Internacional Situacionista, nº 2, 1958.
JACQUES, Paola Berenstein (org.). Apologia da Deriva
– escritos situacionistas sobre a cidade. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio
de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
MAZETTI, Henrique. Resistências Criativas: os
coletivos artísticos e ativistas no Brasil. Lugar
Comum: estudos de mídia, cultura e democracia. nº 25 e 26, p. 105-120, Rio de Janeiro, s/d.
REY, Sandra. Caminhar: experiência estética,
desdobramento virtual. Tradução: Daniela Kern. Revista Porto Arte. Vol. 17, nº 29. Porto Alegre, 2010.
SILVA, Regina Helena Alves da. Cartografias Urbanas:
construindo uma metodologia de apreensão dos usos e apropriações dos espaços da
cidade. Visões Urbanas - Cadernos PPG-AU/FAUFBA,
2008, Vol.V - Número Especial.
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