quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A minha intervenção foi a intervenção em mim!



Bruna Mendes de Fava 

A minha intervenção foi a intervenção em mim. Foi com grande surpresa que acordei no dia cinco de julho, as sete da manhã, com uma certa tensão. Até algumas semanas anteriores a essa data, estava empolgada com o fato de realizarmos a intervenção urbana no centro da cidade, envolvida com as conversas e com os textos lidos em sala de aula, que falavam do vivenciar a cidade sem um objetivo específico a atingir.
Queria vivenciar o que Guy Debord (1958) cita das experiência à deriva, deslocar-me durante nossa intervenção sem saber o que realmente iria fazer, deixar-me levar pelas solicitações do próprio terreno que me esperava, além dos encontros que a ele correspondiam.
A deriva, em seu caráter unitário, compreende o deixar levar-se em sua contradição necessária: o domínio das variáveis psicogeográficas pelo conhecimento e o cálculo de suas possibilidades. Concluído este último aspecto, os dados postos em evidência pela ecologia, ainda sendo a priori muito limitado o espaço social que esta ciência propõe estudar, não deixam de ser úteis para apoiar o pensamento psicogeográfico (DEBORD, 1958, p.1).
 Porém, no dia tão esperado, resisti no primeiro momento à deixar-me levar pela experiência, pois comecei a racionalizar e me preocupar com o que iria acontecer. Cheguei um pouco nervosa a Praça Alencastro, nosso ponto de encontro, talvez porque realizaria algo totalmente novo, meu primeiro contato com esse tipo de atuação ocorreu em sala de aula, na disciplina de poéticas contemporâneas.
Comecei a pensar que precisava criar um objetivo para aquela intervenção, e que se saísse a deriva talvez no final não teria encontrado um sentido em tudo o que eu iria viver e até então eu queria um sentido. E agora? Não tinha pensado em nada. Achei que tinha me entregado ao espírito da deriva, mas me enganei. O que analisar? Qual será meu foco? Meu olhar? Pensei em analisar as pessoas, suas reações diante da intervenção, ou seria melhor outra ocorrência? Estava desassossegada.
Fui a segunda estudante a chegar na praça, e comecei a analisar aquele lugar e fui relaxando. Já tinha morado no prédio em frente, o Maria Joaquina, e pertencido aquele ambiente de algum modo. O pessoal foi chegando, fomos pegando os materiais necessários para o dia, fomos abrindo as sombrinhas coloridas e  assim, parei totalmente de analisar a intervenção.
Entrei na experiência de modo que não lembro de ter racionalizado mais nada. Nosso pequeno trajeto inicial com as sombrinhas ao Senadinho, foi já interessante, os transeuntes todos nos olhando curiosos, ainda no espírito crítico das manifestações ocorridas durante o mês, três pessoas nos perguntaram curiosas O que estávamos manifestando? E eu respondia a proposta das sombrinhas: queremos mais sombra na cidade.
No Senadinho, local que pensei que íamos ter dificuldade para inserirmo-nos foi também surpreendente, e mais uma vez me vi conversando com os membros do grupo deles, sem me colocar em um papel observador, mas sim ativo diante da experiência. Conversei com alguns senhores quanto as famílias cuiabanas, a respeito do que estavam achando das manifestações que vinham ocorrendo na cidade, e nas mudanças do povo cuiabano e da própria cidade nos últimos anos.


Figura 1- Senadinho
Foto- Bruna Fava

Figura 2- Quadro no Senadinho
Foto- Bruna Fava

Depois de vivido essa experiência, partimos para a praça da república onde, parafraseando  o que acontece nos textos de Clarice Lispector, ocorreu a  “epifania do meu conto”, o momento de revelação e profunda imersão no que tive de mais interessante neste dia pitoresco.
Quando chegamos a praça, começamos a organizar os materiais que iríamos utilizar. Distribuímos redes, colchões e pufes de forma harmônica pelo local e isso já começou a chamar a atenção de quem passava por ali. A intenção  era transformar a praça pública, que tem sido utilizada geralmente como local de conexão e passagem dos transeuntes, em um lugar agregador, de vivência e convivência. 

Figura 3-  República do Cochilo
Foto- Bruna Fava

A república do cochilo começou a se instaurar, estudantes, trabalhadores e crianças se interessaram pelo local e começaram a participar daquele ambiente. O estranhamento inicial ocorria, e diversas perguntas a respeito do que significava tudo aquilo surgiam. Da onde vocês são? Qual é o objetivo disso? Posso me deitar? E assim a praça começou a ser vivenciada.
As pessoas na praça começaram a usufruir da experiência,  depois de algum tempo, resolvi deitar em um colchão também. Enquanto o ambiente era constituído, o processo contrário acontecia comigo. Nunca tinha pensado em viver uma experiência como esta, senti que algo estava acontecendo em mim, uma mudança de perspectiva me tomava diante da imersão naquele processo,  é como se uma mudança estrutural me agarrasse, me colocando diante de uma mudança de valores e princípios. O que é certo? E neste momento voltei fazer análises, mas não  do que estava acontecendo no ambiente da intervenção,  mas da intervenção  em mim.
Posso dizer que me inseri no contexto da nova criação do meu corpo-em-arte, que é o corpo- subjétil, citado por Ferracini (2007), em que um outro tempo e espaço  me pareciam atravessar em uma nova intensidade. Mas como acontece essa recriação? Como recriar um outro tempo e espaço?  Ferracini questiona e nos situa nestas questões:
Seria uma mera metáfora? Obviamente, quando dizemos que o corpo-subjétil cria um outro tempo e um outro espaço não queremos dizer que ele tem a capacidade de diminuir ou acelerar a pulsação temporal no seu relógio de pulso ou que o espaço ao redor desse corpo-subjétil se expanda ou se comprima mecanicamente transgredindo as funções matemáticas espaciais e físicas. A arte, o corpo-subjétil, não age nas leis da física clássica, mas age nas percepções e afetações sensoriais. Mas poderíamos dizer aqui que, se a arte, o corpo-subjétil, age nas percepções e afetações sensoriais, ela ainda estaria conectada ao tempo-espaço clássico, já que as macropercepções, em última instância, são leituras de sensações que “habitam” esse tempo-espaço clássico. Portanto, ao adentrarmos na tentativa de realização de um outro tempo-espaço no corpo-subjétil não discursamos nem no território do tempo-espaço mecânico, nem no território dessas macropercepções sensoriais (FERRACINI, 2007, p.1)
Além da mudança do tempo e do espaço, vi esvair em mim não sei se lentamente ou rapidamente, o meu ego e a racionalidade. Um turbilhão de questões me atravessavam a todo momento. Questionava-me quanto a minha liberdade e a do outro, o que realmente importava? Foi uma sensação boa, como se eu pela primeira vez me permitisse sentir o novo, o diferente, o impossível.
 Minha perspectiva de tempo mudou de tal maneira que não era mais 14:00, 15:00 ou 16:00 horas, não era nem tarde. A sombra da praça me ajudou nesse sentido, quando vi já estávamos recolhendo todo material da praça e indo embora.
O espaço então mudou toda sua perspectiva, eu via tudo e todos naquela praça como uma imensidão e importância jamais vista, tudo e todos pareciam estar ali com a obrigação e intenção de me atravessar, de me desconstruir. As várias estruturas  que eram até então estabelecidas dentro de mim, como minha vergonha, liberdade, felicidade, respeito, a partir daquele momento passaram a ser questionadas. Mas no que consiste essa desconstrução? Como ela tomou essa proporção em mim?
Derrida (2001), um dos percursores deste conceito, cita que a desconstrução marca o afastamento entre a inversão que coloca na posição inferior aquilo que estava na posição superior e também  a emergência repentina de um  conceito novo que não era compreendido anteriormente.
Dardeau (2011) cita a estratégia geral da desconstrução de Derrida, em que é constituída de dois momentos ou de um duplo gesto, sendo os  da inversão e o do deslocamento, onde a hierarquia conceitual metafísica é invertida, e assim tudo que é subordinado, considerado subalterno  é tido como  especial.
Isso é realmente o que aconteceu comigo na minha experiência, em que tudo que considerava menos relevante, subalterno na hierarquia dos meus valores, ou até mesmo, nem considerava ou imaginava, é visto com outros olhos, tudo foi deslocado e invertido dentro de mim.
Derrida, acredita que esta desconstrução consiste em deslocar os termos de uma dada oposição conceitual para outro local, e portanto o filósofo inicia admitindo os quase-conceitos ou indecidíveis, em lugar dos conceitos “tranqüilizantes” oferecidos pela metafísica (DARDEAU, 2011).
 Deitada, olhado a igreja Matriz na vertical, encarei minhas ações  até aquele momento e o quanto a sociedade e minha cultura me limitavam a sentir algo parecido com aquela sensação. As pessoas deitadas ao meu lado nos colchões, moradores de rua, estudantes, crianças e meus colegas, assim tão próximos de mim, numa mesma condição igualitária e democrática, usufruindo do mesmo ambiente, do mesmo tipo de colchão inflável azul, me fizeram lançar mão, naquele momento,  das minhas hierarquias idealizadas, me quebravam a soberba e me traziam um sabor de humildade, jamais sentido anteriormente.

Figura 4- Vivencência
Foto: Eveline Teixeira

Deitar na praça da República me fez repensar na solidariedade, na preocupação com os marginalizados, na importância de dar voz, oportunidade aos que não são ouvidos. Isso tudo só foi possível porque estava na condição  que me colocava em um ambiente não convencional e  quebrava meus paradigmas, me permitindo e me obrigando a enxergar outra perspectiva, outro espaço. Por estar em posição literal no espaço, mais abaixo que os que estavam em pé, em um momento, pareceu que estava assistindo um filme de ficção, deitada em um sofá:  De um lado meus colegas ouvindo o delírio de um morador de rua que se drogava com cola, dando-lhe a atenção de quem realmente merecia ser ouvido e de outro lado, um  senhor em pé, sendo filmado pela professora, que proporcionou a ele toda a liberdade para se expressar, ouvindo e  filmando pacientemente como se fosse um dever, uma necessidade naquele momento de deixá-lo falar.

Figura 5- Colegas e morador de rua
Foto- Eveline Teixeira

Consegui depois de ter enxergado e analisado minha desconstrução  relaxar e dormir no colchão na praça. Sinto que este ato expõe minha aceitação daquela nova condição que me atravessava, depois de uma certa resistência inicial do primeiro estranhamento, de desmistificar as sensações e me colocar em um lugar mais democrático verdadeiramente, diante daqueles que deitavam a minha volta, consegui aceitar a desconstrução que ocorrera, o ato de dormir profundamente, me fez acordar renovada e aceitando minha nova construção.
Desconstruir uma oposição é mostrar que ela não é natural e nem inevitável mas uma construção, produzida por discursos que se apóiam nela, e mostrar que ela é uma construção num trabalho de desconstrução que busca desmantelá-la e reinscrevê-la - isto é, não destruí-la mas dar-lhe uma estrutura e funcionamento diferentes (Culler, 1999, p.122).
Figura 6- Cochilo
Foto- Eveline Teixeira




















REFERÊNCIAS

CULLER, J. Sobre a Desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. Trad. Patrícia Burrowes. Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Tempos, 1997.

DARDEAU, D. Jacques Derrida: da linguagem à escritura, da escritura como transbordamento Ensaios Filosóficos, Volume III - abril/2011.

DEBORD, G. Teoria da Deriva. Revista Internacional Situacionista, nº 2, 1958.
DERRIDA, J. Posições. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2001.
FERRACINI, R. O corpo-subjétil e as micropercepções: um espaço-tempo elementar. In Tempo e Performance. MEDEIROS, Maria Beatriz de,MONTEIRO, Mariana F. M. e MATSUMOTO, Roberta K.(org). Brasília:Editora da Pós-graduação em Artes da Universidade de Brasília, 2007.



Nenhum comentário:

Postar um comentário