segunda-feira, 12 de agosto de 2013

RELATOS DE INTERVENÇÃO - SENADINHO E REPÚBLICA DO COCHILO


Márcia Screnci Ribeiro
Este texto é o relato de uma experiência de intervenção urbana proposta pela Profª Dra. Maria Thereza Azevedo, na disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas II, para a turma do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT, no primeiro semestre do ano de 2013.
Inicialmente o grupo foi desafiado a visitar e fotografar possíveis locais onde seria realizada a intervenção[1] e depois trazer à discussão para a escolha de forma democrática.
Entre os espaços apresentados optou-se pela Praça da República, especialmente por ser ela um espaço utilizado pelos trabalhadores e transeuntes que ali circulam para descanso.
Entretanto, como fora apresentado o chamado “Senadinho”, casa localizada em rua central, onde ocorre reunião matinal de senhores pertencentes à sociedade tradicional cuiabana, e que ali se encontram para conversar, decidiu-se que também seria esse espaço foco da intervenção.
Para Castells  (1983, p.181):
O espaço é um produto material em relação com outros elementos materiais – entre outros, os homens, que entram também em relações sociais determinadas, que dão ao espaço (bem como aos outros elementos da combinação (uma forma, uma função, uma significação social.

A experiência teve como base a técnica da deriva criada pelos situacionistas, sendo Guy Debord um de seus principais estudiosos. Consiste em se deixar levar pelas atrações do terreno e pelos encontros que ali se processam, a fim de observar e tentar reconhecer os efeitos de natureza psicogeográficas (DEBORD, 1958)
O local de encontro foi na Praça Alencastro onde foi possível observar peculiaridades que passam despercebidas do olhar cotidiano. Um homem que engraxava os sapatos em plena praça, outro que dormia sentado sem se incomodar com o movimento, senhores conversando animadamente, pessoas que passavam apressadamente.
   
Figura 1 – Grupo reunido Praça Alencastro                              Figura 2 -  Engraxate
                   Foto Márcia Ribeiro                                             Foto Márcia Ribeiro

O grupo concentrado aguardava a chegada da Profª Maria Thereza, que trouxe suas sombrinhas para serem utilizadas no deslocamento até o senadinho. Cada pessoa portava uma delas, assim foram caminhando juntos durante o trajeto e devido a seu colorido e aglomeração, gerou curiosidade nas pessoas que se encontravam no percurso.
Figura 3- Sombrinhas
Foto Márcia Ribeiro

Ao chegar ao Senadinho pedimos permissão para participar da reunião de senhores, ao que fomos muito bem recebidos. O diálogo iniciou animado e eles relataram com orgulho a existência do grupo, mostrando os quadros afixados na parede que contem reportagens jornalísticas sobre a existência do mesmo.
Figura 4 – Senadinho
Foto Márcia Ribeiro

Fizeram várias manifestações e nos saudaram com um poema recitado por um deles, médico aposentado, que demonstrou na sua fala o dom da oratória, talvez herança de sua condição de ex-político.
A conversa foi bastante animada e reveladora, trata-se de um grupo que existe a muito tempo, composto exclusivamente por pessoas do sexo masculino. O dono da casa oferecia cadeiras de balanço para descanso aos amigos que vinham ao centro da cidade para ir ao banco, resolver negócios, etc. A partir de então, acostumaram-se a se reunir todas as manhãs e, atualmente, existem nove deles que lá se encontram todos os dias, de segunda a sexta, e outros que costumam aparecer esporadicamente. É também uma maneira, segundo eles, de preencher o tempo disponível graças à aposentadoria.
Figura 5 – Senadinho
Foto Márcia Ribeiro

Animados com a nossa presença contaram vários casos e se sentiram prestigiados pela visita. A intervenção tem como objetivo principal promover transformações no cotidiano (BARBOSA, p.2) e foi isso o que se observou.
A calçada foi invadida por cadeiras, nas quais as mulheres excepcionalmente tiveram assento, pois normalmente o “senadinho” é formado exclusivamente por homens. Alterada a rotina do encontro e fugindo das conversas diárias, muitas vezes repetidas que ali ocorrem, sabemos que a nossa visita não foi apenas algo momentâneo, mas tornou-se um acontecimento que será assunto para muitos de seus encontros futuros.
Encerrada a visita o grupo partiu em direção à Praça da República com a finalidade de transformá-la na “República do Cochilo”, objeto principal da proposta.
Na Praça da República o grupo montou o cenário que a transformou na República do Cochilo. “As intervenções no espaço público tem particularmente se utilizado do ‘desvio’ como principal meio de alterar situações urbanas estabelecidas. (BARBOSA, p.5)”.
                    
   Figura 6 – Praça da República ou Cochilo              Figura 7 – Praça da República ou Cochilo
                    Foto Márcia Ribeiro                                               Foto Márcia Ribeiro
           
Redes foram colocadas entre as árvores, colchões e pufes colocados no chão e um varal no qual as pessoas eram convidadas a manifestar seus pensamentos em relação a uma cidade melhor. Chamamos esse local de “falatório”, ou seja, um lugar onde as pessoas poderiam falar.
A interferência do artista num determinado locus urbano muitas vezes convida o público à participação direta mediante estratégias de atuação performática e de apropriação de elementos estéticos preexistentes. (BARBOSA, p.2)

Muitos transeuntes se interessaram em registrar suas opiniões e também conversar com o grupo sobre a representação daquele ato.
Uma bacia recebia papéis escritos com aquilo que se deseja eliminar das cidades, ou seja, simbolicamente uma “lavagem de roupa suja”.
Nos colchões havia livros infantis e algumas crianças ali ficaram encantadas em manusear e ouvir as histórias, enquanto suas mães, pacientemente as aguardavam.
Durante quase todo o ato, pode-se observar um homem (foto 8) que dormia sono profundo em um dos bancos da praça com uma sacola de viagem servindo-lhe de travesseiro, tornando-se um símbolo de nossa experiência, dando sentido ao nome que batizamos “do Cochilo”.

Figura 8 – Homem dormindo na Praça do Cochilo
Foto Márcia Ribeiro

O público ali presente era bastante heterogêneo, estudantes jovens reunidos, mulheres com filhos, homens sozinhos, trabalhadores em horário de almoço e pessoas que atravessavam apressadamente a praça.
Um grupo (foto 9) usando uniforme da loja em que trabalham compôs a paisagem com o “Z” estampado em suas camisetas, se integrando ao cartaz que ilustrava como se fosse uma onomatopeia do sono.
Foto 9 – Grupo de trabalhadores na Praça
Foto Márcia Ribeiro

Certamente os que ali estiveram estranharam a mudança de paisagem ocasionada pelas redes, colchões e varal, porém assim que foram retirados devolveram à paisagem aquela normalidade cotidiana que faz com que as pessoas ignorem e não percebam a cidade em que vivem.
E assim como as pessoas que por ali circularam e puderam ter o seu momento de “cochilo”, também ocorreu com as sombrinhas, objetos de intervenção da Profª Maria Thereza, que permaneceram descansando após invadir o espaço da praça.
Foto 10 – Sombrinhas no Cochilo

Referências
BARBOSA, Eduardo Romero Lopes. A Técnica do Détournement no Espaço Urbano: intervenções artísticas de Marcelo Cidade e Gabriel e Tiago Primo.
CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1983.
DEBORD, Guy. Teoria da deriva. Texto publicado no nº. 2 da revista Internacional Situacionista em dezembro de 1958. Disponível em 1958. Disponível em http://pt-br.protopia.wikia.com/wiki/Teoria_da_Deriva
JACQUES, Paola Berenstein.  Urbanismo à deriva: o pensamento crítico situacionista
SILVA, Antônio Carlos de Araújo. Intervenção Urbana: uma experiência pedagógico-artística. VI Congresso de Pesquisa e Pós Graduação em Artes Cênicas, 2010.







[1] Intervenção urbana é o termo utilizado para designar os movimentos artísticos relacionados às intervenções visuais realizadas em espaços públicos.

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