segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Intervenção Urbana: uma experiência estética



Intervenção Urbana: uma experiência estética

Elizabete Angela Paro


A Intervenção Urbana não é apenas uma manifestação artística, suas ideias vão além da arte, pois surge da necessidade de se tratar da vida cotidiana como uma crítica ao funcionalismo moderno. No entanto, enxergar a intervenção urbana como arte requer uma desconstrução, pois é um tipo de arte que tem sua intenção no processo, uma das principais ideias que inaugura a arte contemporânea. A arte aqui está inserida em um contexto que torna a cidade um lugar de diálogo.
Sabemos que a arte sempre contribuiu para uma mudança de percepção no modo de ver e sentir a vida. A intervenção urbana, porém, coloca lentes em nossos olhos, fazendo com que enxerguemos detalhes que nos passariam despercebidos e transforma o mesmo lugar em diferentes lugares a cada vez que se olha. Portanto, se mudarmos a maneira de olhar, um espaço só dura um instante.
O processo artístico na intervenção urbana é um “deixar acontecer”, um exercício onde todo movimento gera ressonâncias, desde que se esteja aberto para deixar acontecer, desconstruindo pequenas coisas e apegos que cristalizam nosso cotidiano. Aceitar a deriva, o inesperado, sem controle ou planejamento e sem a preocupação com a estética, nem compromisso com o belo. Apenas afetar e ser afetado para produzir efeitos inesperados.
Eram essas as intenções da “República do Cochilo”, intervenção urbana realizada pela turma de Mestrado ECCO/2013. Uma experiência pessoal, com a participação do coletivo.


A República do Cochilo

O espaço escolhido para a realização de uma intervenção urbana foi a Praça da República, considerando a grande circulação de pessoas e sua importância histórica. Interessou-nos, sobretudo, a pluralidade de sentidos produzidos à margem dos processos culturais, políticos e sociais, e que são invisibilizados pelo corre-corre do cotidiano.
Capturando os diversos sentidos que as pessoas imprimem a um espaço público e os diferentes usos que fazem dele, nossa intenção era tornar perceptível a diversidade de sons, cheiros, conversas, árvores, cores, e tudo o que mantém vivo aquele espaço, desconstruindo a passividade e a massificação dos comportamentos e criando situações para desmontar o que se tornou comum e despercebido.
Nossa proposta teve como referência a IS (Internacional Situacionista), formada por artistas, ativistas e pensadores europeus como Guy Debord, na década de 50, com o intuito de estimular uma participação mais ativa dos indivíduos na vida política, social e cultural, indo contra a cultura do espetáculo da sociedade capitalista. Jacques se utiliza das palavras de Debord quando diz que


Nossa ideia central é a construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior. Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois grandes componentes que interagem continuamente: o cenário material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o alteram. (JACQUES apud DEBORD, 2003, p. 21)


e conforme acreditavam, ainda hoje a cidade é vista como “terreno de ação, local de produção de novas formas de intervenção e transformação do cotidiano” (SILVA, 2008). Segundo a autora,

Estas práticas tinham como princípio uma apropriação do espaço que ultrapassasse a lógica da definição de funções. Para os situacionistas, era preciso explorar o espaço e suas possibilidades contrapondo-se à passividade diante dos usos pré-definidos, decorrentes da estruturação capitalista da cidade. (SILVA, 2008, s/p)


            Esta experiência permitiu-nos uma nova relação com a cidade através de um olhar estético, pois a velocidade não nos permite viver a cidade, percebê-la. Foi preciso “experimentar para compreender”, ver a cidade não como um lugar de fluxo, mas um lugar de vivência.


O que vocês fizeram com a minha praça?

            Neste momento, gostaria de relatar algumas situações que ilustram o efeito estético da intervenção.
            Na ocasião em que estávamos preparando o ambiente com varais, colchonetes, sombrinhas, cartazes, fomos surpreendidos com um senhor nos questionando: “O que vocês fizeram com a minha praça?” A professora, mais que depressa, sabiamente respondeu: “A praça é de todos!” Mas através deste questionamento, pudemos perceber a relação daquele senhor e de muitos outros personagens que ali passaram ou permaneceram por um determinado tempo, com a praça em questão.
            Percebemos ainda que as redes, os colchonetes e as sombrinhas falavam por si, e as subjetividades eram compartilhadas através da “ação” de “descansar”. Ali, os papéis sociais não obedeciam a regras, e todos tinham voz e espaço. Estudantes, garis, mães, viajantes, crianças, professores, vendedores, idosos, dependentes químicos, adolescente grávida, sombrinhas, cartazes, redes, árvores, bancos, colchões... tudo compondo o acolhimento da praça, sem hierarquias.
            Nós, mestrandos, éramos “ativos”, mas sentimos os efeitos da intervenção que provocamos.


            Há quem pergunte: o que vocês mudaram na vida da cidade?
            E, ousadamente, eu respondo:
            Mudamos, primeiro, a nós mesmos, transformamos a Praça da República em um lugar de diálogo, que sempre será diferente a cada vez que passarmos por ali. Transformamos pessoas, ouvimos relatos, confidências, desejos, sonhos, e também contamos histórias; destacamos cada árvore, cada cor, cada banco. Simplesmente participando, por um instante, da vida da cidade, e interferindo nela e em seus atores.






Bibliografia


BARBOSA, Eduardo Romero Lopes e PORTO FILHO, Gentil. A Técnica do Détournement no Espaço Urbano: intervenções artísticas de Marcelo Cidade e Gabriel e Tiago Primo. Disponível em: http://www.esocite.org.br/eventos/tecsoc2011/cd-anais/arquivos/pdfs/artigos/gt020-atecnica.pdf

COCCHIARALE, Fernando. A (outra) Arte Contemporânea Brasileira: intervenções urbanas micropolíticas. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA/UFRJ. Rio de Janeiro, 2004.

DEBORD, Guy e WOLMAN, Gil. Um guia prático para o desvio. Artigo publicado no jornal surrealista belga Les Lèvres Nues, 1956. Disponível em: http://www.imagomundi.com.br/cultura/desvio.pdf

DEBORD, Guy. Perspectivas da transformação consciente da vida quotidiana. Disponível em: http://imagomundi.com.br/cultura/perspectivas_transformacao.pdf.

DEBORD, Guy. Teoria da Deriva. Revista Internacional Situacionista, nº 2, 1958.

JACQUES, Paola Berenstein (org.). Apologia da Deriva – escritos situacionistas sobre a cidade. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.

MAZETTI, Henrique. Resistências Criativas: os coletivos artísticos e ativistas no Brasil. Lugar Comum: estudos de mídia, cultura e democracia. nº 25 e 26, p. 105-120, Rio de Janeiro,  s/d.

REY, Sandra. Caminhar: experiência estética, desdobramento virtual. Tradução: Daniela Kern. Revista Porto Arte. Vol. 17, nº 29. Porto Alegre, 2010.

SILVA, Regina Helena Alves da. Cartografias Urbanas: construindo uma metodologia de apreensão dos usos e apropriações dos espaços da cidade. Visões Urbanas - Cadernos PPG-AU/FAUFBA, 2008,  Vol.V - Número Especial.


Nenhum comentário:

Postar um comentário