quinta-feira, 15 de agosto de 2013

INTERVINDO NA SESTA ALHEIA




Adinil Carlos

A arte contemporânea na sua complexidade nos envolve com suas tão distintas técnicas e extensões, que na maioria das vezes nos traz à tona a ideia do “novo”, talvez pudesse até dizer do “inusitado”.
Por meio de estudos feitos através de leitura de textos, vídeos e discussões, tivemos como objeto de estudo a “intervenção urbana”. Temos por intervenção urbana:

No campo artístico as chamadas "intervenções urbanas" podem ser entendidas como uma vertente da "arte urbana", "ambiental" ou "pública". Como o próprio termo indica, a "intervenção" tem como objetivo principal promover transformações no cotidiano a partir da inserção da arte no espaço público. A interferência do artista num determinado locus urbano muitas vezes convida o público à participação direta mediante estratégias de atuação performática e de apropriação de elementos estéticos preexistentes. (PORTO FILHO; BARBOSA, 2011).

Assim, a intervenção urbana no fato de “convidar o público” a participar, produz uma situação quem tem como o resultado o “imprevisto”. O “criar uma situação” nos remete aos estudos de Guy Debord e da Internacional situacionista (IS). Portanto, o situacionismo tem como base a “construção de situações”.
Como nos esclarece Paola Berenstein “O situacionismo constituiu-se de um grupo de artistas, pensadores e ativistas que lutavam contra a espetacularização das cidades, ou seja, foi contra a não-participação, a alienação e a passividade da sociedade.” Partindo dos estudos acerca deste assunto, criamos uma proposta de intervenção urbana, ou seja, o criar uma situação que interfira no espaço público em Cuiabá. Após um período de observação e votação em sala de aula, optamos pelos locais: Senadinho e Praça da República.
O senadinho é um local onde se reúnem, quase que diariamente, senhores de idade mais avançada, com a proposta de discutir a política e o cotidiano da cidade de Cuiabá. Essa reunião se consolidou de tal maneira que se tornou uma tradição por parte dos participantes. O senadinho nos tornou uma opção interessante pelo fato de termos vivenciado tão recentemente diversas manifestações por parte da população contra as autoridades, e o momento de nos reunirmos com esses senhores se tornou propício.
Através de observações feitas na praça da república, percebemos que se tratava de um local onde a sesta (Sono de curta duração que se dorme geralmente depois da refeição do almoço) era evidenciada. Assim decidimos “criar a república do cochilo”, levando redes, colchões de ar, almofadas, etc.

República do cochilo – Imagem de Adinil Carlos

Após nos reunirmos na Praça Alencastro, fizemos o deslocamento para o Senadinho fazendo uso das sombrinhas, numa forma sugestiva de transmitir a ideia de que precisamos de mais sombras para Cuiabá. O que chamou a atenção de muitos transeuntes.

Deslocamento com sombrinhas – Imagem de Adinil Carlos

Como uma das propostas, ou métodos oriundos do situacionismo, temos a deriva, ou deambulação urbana, que é o caminhar “sem rumo”.

As derivas buscavam sempre um uso situacionista do espaço, ou seja, uma possibilidade de criar experimentações que tornassem o cotidiano urbano - lugar da fragmentação e da banalidade - em um espaço da revelação, da crítica e da transformação. O andar na cidade permitia reconhecer nos edifícios e objetos urbanos funções independentes de seu uso prático racional. (SILVA, 2008)

Como geralmente acontece com os grandes centros das cidades, cada vez mais se apresentam como “lugar de passagem”. As pessoas se dirigem para o centro para trabalhar, fazer compras ou passam pela região apenas como um ponto de caminho para outros lugares. Como experiência particular, nessa atividade artística pude perceber o quanto isso é relevante e significativo. A região onde escolhemos para intervir foi para mim, por um tempo considerável, apenas uma região de passagem. Quando pude contemplá-la por outro olhar, por um instante me pareceu que eu estivesse até mesmo em outra cidade, que não fosse Cuiabá. Isto se evidencia no relato de Silva:

Poucos são aqueles que passeiam pelo Centro ou caminham nesta região dando maior atenção às suas características e particularidades. A dimensão do centro como espaço público, como espaço de encontro, de reunião e de convívio social fica assim despercebido. (SILVA, 2008).

Temos então a cidade como um “organismo” e as pessoas como um fluxo nesse organismo. Em determinados momentos podemos perceber certa movimentação de um público específico como, os trabalhadores do comércio, guardas, garis, e em dado momento constatamos um fluxo de outra classe de pessoas, moradores de rua, andarilhos, etc. E esses fluxos são rotineiros, de grande previsibilidade.
Este “movimento” rotineiro da cidade, com esses fluxos constantes, se confirmou em nossa atividade artística. Tamanha é a previsibilidade que, nos dirigimos para o primeiro local, o senadinho, convictos de que encontraríamos ali os seus “membros”.
Por outro lado, a nossa visita se tratou de algo totalmente inusitado, por parte dos membros do senadinho, que nos receberam com entusiasmo e curiosidade. Como dito, o senadinho reúne senhores idosos com a proposta de discutir a política e o cotidiano da cidade de Cuiabá. Apesar de não terem poder efetivo para governar a cidade, alguns já ocuparam tal posto, como o de vice-prefeito. De acordo com a fala, de caráter cômico, de um dos senhores: “(...) Aqui no senadinho nós discutimos sobre tudo e não resolvemos nada”.
Apesar de não se tratar de uma instituição oficial, percebe-se uma ordem que remete a tal, como por exemplo, quando um membro se propõe a fazer um discurso, este é apresentado com antecedência por outro membro. Outra semelhança com uma instituição oficial, é que os participantes do senadinho tomam as demandas da população e a levam a sério, isto se evidenciou quando uma senhora reclamou da ocupação indevida da calçada e um dos membros apoiou com firmeza.

Senadinho – imagem de Adinil Carlos

Deslocamos para a praça da república, para a segunda etapa da intervenção urbana que propusemos. À medida que fomos preparando o local, inflando colchões de ar, amarrando redes, e colocando almofadas, varais, etc., os olhares atentos das pessoas se voltaram para o “movimento”, alguns com receio apenas observavam, enquanto outros interagiam de maneira mais pragmática.
Temos, nesse ano de 2013, vivenciado vários episódios de manifestações populares contra o governo, isso ressoou também em nossa intervenção. Durante a experiência, certo cidadão após ler o cartaz “República do sono” indagou: “(...) É um manifesto? Vocês estão querendo dizer que as autoridades estão dormindo?” Apesar de não se tratar de nossa meta, a proposta de escrever em cartazes reivindicações, pode por vezes sugerir isto.
O fluxo de diferentes tipos de pessoas marcou também esta experiência, houve momentos em que na praça prevaleceram alunos, ora trabalhadores do comércio, e ora moradores de rua. A princípio surgiu o questionamento se alguém teria coragem de deitar na praça, mas logo se percebeu que este receio não tinha tanto peso assim, e que as pessoas, principalmente quando estão em grupos ousam mais.

Funcionários do comércio – Imagem de Adinil Carlos
 
Na maior parte do tempo, tivemos contato com moradores de rua, homens que estão “fora de sintonia” da correria do dia-a-dia dos demais. Tais homens podem ser referidos como “homens lentos”, uma expressão cunhada por Milton Santos. A respeito destes, ele afirma:

Durante séculos, acreditáramos que os homens mais velozes detinham a inteligência do Mundo. A literatura que glorifica a potência incluiu a velocidade como essa força mágica que permitiu à Europa civilizar-se primeiro e empurrar, depois, a "sua" civilização para o resto do mundo 132. Agora, estamos descobrindo que, nas cidades, o tempo que comanda, ou vai comandar, é o tempo dos homens lentos. Na grande cidade, hoje, o que se dá é tudo ao contrário. A força é dos "lentos" e não dos que detém a velocidade [...]. Quem, na cidade, tem mobilidade - e pode percorrê-la e esquadrinhá-la - acaba por ver pouco, da cidade e do mundo. (SANTOS, 2006, p.220)

A experiência constituiu-se de grande valor para mim devido ao fato de se tratar de algo novo, não tão voltado para a minha área de atuação, que é a música. Através desta, pude notar a tamanha significância que consiste no fato de olhar a cidade por outra perspectiva e a necessidade de refrear a rotineira correria para atentar para fatos que só podem ser percebidos quando se separa um tempo específico para contemplação.



REFERÊNCIAS

BARBOSA, Eduardo Romero Lopes; PORTO FILHO, Gentil. A Técnica do Détournement no Espaço Urbano: intervenções artísticas de Marcelo Cidade e Gabriel e Tiago Primo.

JAQUES, P.B. Urbanismo à deriva: o pensamento crítico situacionista.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4°ed. 2° reimpressão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

SILVA, Regina Helena da. Cartografias Urbanas: construindo uma metodologia de apreensão dos usos e apropriações dos espaços da cidade. Visões Urbanas - Cadernos PPG-AU/FAUFBA, Vol. V, Número Especial, 2008.

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