quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Intervenção urbana e a (des)ordem do discurso


Por Andhressa Barboza

A proposta de intervenção urbana surgiu ao curso da disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas II, do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT, ministrada pela professora Maria Thereza Azevedo. A partir de discussões em sala e visitas in loco, realizamos a intervenção no dia cinco de julho de 2013 e a situação foi dividida em dois ambientes: primeiro visitamos o local de reunião do chamado “Senadinho”, o segundo foi a Praça da República, ambos no centro de Cuiabá. O “Senadinho” trata de um grupo de senhores que fizeram parte da Administração Pública e hoje estão aposentados. Eles se reúnem diariamente para discutir temas relacionados á conjuntura sócio-politico-econômica local e nacional. Contudo, nesse texto vamos nos ater à segunda situação, a da Praça da República.

A intervenção recebeu o nome de “República do Cochilo”, pois em visita prévia foi constatado que aquele espaço é procurado por trabalhadores da vizinhança para o descanso no horário do almoço.

A Praça da República é próxima de outra praça, a Praça Alencastro que fica em frente ao Palácio Alencastro, sede da Prefeitura de Cuiabá. Apesar da proximidade física, as praças apresentam diferenças quanto às atividades desenvolvidas. A Alencastro é o local onde comumente são realizadas as feiras para campanhas informativas voltadas às políticas públicas de saúde, educação e outras atividades sempre relacionadas à “cidadania”. Já a Praça da República é o local onde ficam pessoas em situação de rua.

Durante as sete horas que ficamos na Praça da República, foi possível conhecer alguns desses sujeitos sociais. O que busco desenvolver como reflexão deste trabalho tem como dados primários a experiência neste campo e como dados secundários algumas falas de colegas de turma após a intervenção.

A seguir está transcrita a fala de uma colega que conta sobre um rapaz que veio conversar com ela:

Pensei: não vou dar muita corda porque ele vai ficar mala, mas prestava atenção em tudo que ele falava. Esse moço que fala um monte de coisa que a gente está considerando bobagem, tipo “Ahhh, que chato”, talvez ele seja o único que tenha alguma razão para falar naquele ambiente, porque nós, ali estávamos fazendo arte e ele estava vivendo. A maioria das pessoas tem dificuldade de lidar com pessoas nessas situações.

Pela fala da colega percebemos como intervenção deu voz a discursos considerados não autorizados. Segundo Foucault (2007), a produção de discurso nas sociedades é controlada, selecionada, organizada e redistribuída de acordo com procedimentos que tem por função conspirar a favor de poderes e perigos. 

Nem todos os discursos podem ser socializados, para isso existem os mecanismos de exclusão, que são três: a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade. O primeiro são os tabus, as determinações das circunstâncias, o direito privilegiado ou exclusivo à fala. O segundo é uma separação, uma rejeição, pois o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros. O último apoia-se em um suporte institucional que é reforçado e reconduzido por um conjunto de práticas.

Quando falamos dos sujeitos sociais em situação de rua na Praça da República estamos falando de discursos rejeitados o que reforça a delimitação de espaços sociais dos quais ocupam. O controle sobre os discursos se relaciona ao espaço social enquanto espaço simbólico ou de classe social. Segundo Bourdieu (1996) o espaço social é construído de tal modo que os agentes ou os grupos são aí distribuídos em função de sua posição nas distribuições estatísticas de acordo com os dois princípios de diferenciação: o capital econômico e o capital cultural.

Ali na Praça nós, estudantes universitários, exercíamos com a nossa presença dois tipos de violência simbólica, mesmo sem a intenção de exercer: a violência simbólica pelo nosso capital econômico e o capital cultural que constituem um habitus.

Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas que são também esquemas classificatórios. Eles estabelecem as diferenças entre o que é bom e o que mau, entre o que é distinto e o que é vulgar, mas elas não são as mesmas. A ideia principal é que existir em um espaço, ser um agente social é diferir, ser diferente.

Assim, a intervenção na Praça da República provocou uma “desordem” discursiva e estética. Uma vez que deu voz aqueles cujos discursos são rejeitados e se o mundo social, com suas divisões, é algo que os agentes sociais têm a construir, coletivamente, na cooperação e no conflito, essas construções não se dão no vazio, elas surgem de situação e de processos. A distribuição ocupada no espaço social, isto é, na estrutura de distribuição de diferentes tipos de capital, podem ser vistas como armas, pois comandam as representações desse espaço e as tomadas de posição nas lutas para conservá-lo ou transformá-lo.

É o que Foucault (2007) chama de “vontade de verdade”. O autor aponta que esta vontade é uma construção histórica e está apoiada sobre um suporte institucional que tende a exercer uma pressão, um poder de coerção sobre os outros discursos. Apesar da “vontade de verdade” estar sempre se reforçando, tornando-se mais profunda e mais incontornável é dela que menos se fala é como se ela estivesse mascarada. Podemos colocar a “vontade de verdade” dentro do arcabouço dos valores éticos da sociedade.


Referências

BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação social. Campinas: Papirus. 1996.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola. 2007.



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