sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Conversando com Guy Debord naquela praça... aquela que fica na frente da igreja... aquela que é cheia de árvores.


Anna Natale

Este é o meu manifesto e será escrito em primeira pessoa.
Abrir os olhos, virar de lado, fechar os olhos, despertador, abrir os olhos, cambalear até o chuveiro, a água nunca está quente o suficiente, quero as roupas menos amassadas, café-da-manhã? Não, já estou atrasada.
Vida cotidiana de acordo com Henry Lafebvre é: o que subsiste quando se subtrai do vivido todas as atividades especializadas.
Pego esta afirmação e transformo em pergunta, pra mim e para você:
O que subsiste em você quando se subtrai do vivido todas as atividades especializadas?
Hmmmm.
A criação deste texto se torna uma intervenção em mim mesma.
Hmmmm.
E então... o que sobra?
Sobra a inércia, sobra o não fazer, sobra o inesperado, sobra a espontaneidade.
Paro de digitar, olho para direita e vejo o meu quadro branco e está escrito “amor e espontaneidade”.
PARE! VOLTE! FOCO! REDIJA! SEM ERROS! É UM ARTIGO! SEJA FORMAL! PUBLIQUE! SIGA A SANTA CARTILHA LATTES E CAPES!
Mais uma chance:
O que subsiste em você quando se subtrai do vivido todas as atividades especializadas?
Guy Debord quando sentado na mureta me disse: A vida quotidiana se encontra sempre em outra parte, entre os outros, e em todo caso, entre as classes não-sociólogas da população.
E então, lá fomos nós:
Missão: Conseguir tornar a praça confortável o bastante para que as pessoas se sentissem livres para descansar e se expressar.
Alvos:
(1) Atrasados – Aqueles que utilizam a praça como forma para diminuir a distância até o destino desejado.
(2) Matadores de aulas – Jovens e adultos que vivenciam na praça um refúgio para fugirem das aulas e do trabalho.
(3) Meditadores – Pessoas que simplesmente aproveitam a praça e relaxam nela.
(4) Resolvi ir ao centro hoje – Aqueles que não costumam passar pelo centro e muito menos pela praça, mas passaram por ali no dia e na hora certa.
Munição: Redes, colchões de ar, revistas de arte e cultura, pufs, varal, pregadores, folhas em branco, canetas e bacia com água.
Armados de guarda-chuvas até os dentes fomos em direção a praça, éramos observados, éramos suspeitos. No ambiente de diversidade a nossa diversidade se tornou estranha. Olhares nos acompanhavam e nos interrogavam em silêncio. No trajeto me via como uma cientista, daquelas que estudam os animais. Cadê o meu jaleco e a minha prancheta? Eu tinha o poder de observar e analisar aquelas cobaias em laboratório.
...certos intelectuais se vangloriam assim de uma ilusória participação pessoal no setor dominante da sociedade, através da possessão de uma ou mais especializações culturais; isso os situa em primeiro plano, para se dar conta do ato seguido de que o conjunto desta cultura dominante está sensivelmente apoiado. Mas qualquer que seja o juízo que se pronuncie sobre a coerência dessa cultura ou sobre o interesse de seus aspectos, a alienação que ela impôs aos intelectuais em questão consiste em fazê-los crer, desde o céu dos sociólogos, que estes se encontram completamente fora dessa vida quotidiana de qualquer povo, ou situados num lugar por demais elevado na escala dos poderes humanos, como se estes mesmos não fossem igualmente pobres.
E então fui quebrada, o reconhecimento da minha própria ignorância foi jogada em mim como toda aquela areia que dança e povoa as calçadas, carros e roupas em toda a cidade de Cuiabá. O estudo de caso não eram eles, éramos nós. Quem eu era na praça? Quem eu achava que era? Quem eu tinha me tornado? Se eu não era mais a cientista eu poderia ser a meditadora, não poderia ser os dois? Nunca estive naquela praça antes, poderia transformá-la como parte do meu quotidiano?
A vida quotidiana é a medida de todas as coisas: do cumprimento, ou melhor, do descumprimento das relações humanas, do uso do tempo vivido, da busca da arte, da política revolucionária.
Relações humanas... hmmmm... é melhor eu sublinhar isso. E então me dei conta de que naquela praça arborizada, com redes, colchões e pessoas rindo eu tinha levado as minhas próprias barreiras, eu não queria me relacionar, eu não queria me despir deixando de lado a merda da seriedade. O olhar observador que finge ser superior estava ativado de forma sutil, quase camuflada. Eu achava que estava neutra naquele ambiente, mas fui ingênua. Na praça eu era palavras, eu representava palavras do que deveria ser, do que deveria ter me tornado e de todos os outros “não” e “não pode” que estavam impregnados em mim. Eu estava na minha prisão, na minha miséria.
(...) a vida quotidiana está organizada dentro dos limites de uma pobreza escandalosa. (...) é uma pobreza imposta em cada instante pela força e a violência de uma sociedade dividida em classes; uma pobreza historicamente organizada de acordo com as necessidades históricas da exploração. O uso da vida quotidiana, no sentido de um consumo do tempo vivido está condenado pelo reino da carência de tempo livre; e carência dos possíveis usos deste tempo livre.
Me vi sem conseguir entender como aproveitar o dia. Estava sempre alerta. O excesso de espaço e de ar agradável me mostraram o quanto eu me sentia segura ao redor de livros e embaixo do ar-condicionado. Cada vez menos humana.
Esta sociedade tende a atomizar as pessoas convertendo-as em consumidores isolados, e a impedir toda comunicação. A vida quotidiana se converte em vida privada, domínio da separação e do espetáculo (...) as novas cidades de nossos dias demonstram claramente a tendência totalitária que caracteriza a organização da vida pelo capitalismo moderno: nelas os indivíduos isolados (isolados geralmente na estrutura da célula familiar) contemplam como se reduz a sua vida à pura trivialidade do repetitivo, diante da absorção obrigatória de um espetáculo igualmente repetitivo.


DEBORD, Guy. Perspectivas da transformação consciente da vida quotidiana. 1961. DEWEY, J. Reconstrução em filosofia. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nacional, 1959.

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