quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O CORPO COMO TEMA E MEIO DE EXPERIÊNCIA



                                                                                  Daniela Leite
No dia 5 de julho de 2013 propomos instaurar a República do Cochilo, intervenção urbana desenvolvida na disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas II, ministrada pela Professora Doutora Maria Thereza Azevedo, no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT. Esse processo iniciou com a proposta de uma situação previamente combinada de preencher a praça com colchões, redes, puffs e cadeiras, bem como uma “banca do desabafo” onde as pessoas poderiam escrever em papéis e pendurar em varais aquilo que lhes ocorriam ou angustiavam naquele momento. Por ali passamos 8 horas disponíveis aos encontros que aconteceriam no decorrer do dia na Praça da República, centro de Cuiabá.
 O que me interessa, dentre tantas possibilidades, é pensar aspectos do encontro como experiência e como isso reverbera no corpo. Como sugere o filósofo John Dewey (1959), caso a existência mantivesse seu perfeito equilíbrio, frente à experiência do indivíduo, ele não teria o que investigar, o que indagar e, consequentemente, o que conhecer. No máximo, operaria um re-conhecer constante das coisas do mundo.
Por conseguinte, Dewey defende que toda experiência autêntica, o que ele vai chamar de “uma experiência”, têm caráter estético. Sendo a vida constituída de interações (“viver é interagir”) e que é no seio das interações que ocorrem as experiências, existe a possibilidade de que a vida esteja também repleta de apreciação perceptiva e agradável, ou seja, de experiência estética.
Nesse sentido, o antropólogo Victor Turner em Do Ritual ao Teatro, entrelaça diferentes linhas etimológicas do vocábulo “experiência” e esclarece: “(...) etimologicamente, a palavra inclui os sentidos e riscos, perigo, prova, aprendizagem por tentativa, rito de passagem”. Ou seja, uma experiência, por definição, determina um antes e um depois, corpo pré e corpo pós-experiência. Uma experiência é necessariamente transformadora, ou seja, um momento de trânsito da forma, literalmente, uma trans-forma. E, assim, as escalas de transformação são evidentemente variadas e relativas, pois oscilam entre um sopro e um renascimento.
É através dessas lentes que proponho olhar para essa intervenção. Guy Debord (1961), acredita que a vida cotidiana está organizada dentro dos limites de uma pobreza ruidosa. E, sobretudo, porque essa pobreza da vida cotidiana não tem nada de acidental: o uso da vida cotidiana, no sentido de um consumo do tempo vivido está condenado pelo reino da carência de tempo livre; e carência dos possíveis usos deste tempo livre.
Para Suely Rolnik (1997), a arte contemporânea leva cada vez mais a considerar e valorizar o processo, ou seja, aquilo que acontece com (e no) artista em seu diálogo com o mundo, afirmando a ideia de técnicas que não estão a serviço da construção ou criação de um objeto e, sim, técnicas do sujeito, ou melhor, técnicas do si mesmo. Eis que surge uma questão: será que o artista, ao mergulhar em processos de criação, não está embarcando em um profundo processo de autoconhecimento, no qual a técnica revela-se justamente como construção de novas subjetividades?
Trata-se do autoconhecimento enquanto técnica, mas que não deve, nem se pode ficar ensimesmado, pois deve ocorrer em relação ao mundo. A maneira através da qual o artista encaminha seu oficio, é, de fato, como ele encaminha sua existência. Se no pensamento cartesiano a técnica estava fora, como um objeto, hoje ela é a própria pessoa, a própria existência.
Nesse caso, é necessário pensar como o corpo é inserido na existência já que o “corpo” é tema e é meio. Assim, faz-se necessário perguntar: o que é corpo? Uma resposta dentre muitas aponta Gilles Deleuze (2002) em Baruch Espinosa, o qual define corpo de duas maneiras simultâneas: Primeira Proposição: Um corpo é um grupo infinito de partículas relacionando-se por paragem e movimento. São as diferentes velocidades relacionais entre as partículas, que definem as particularidades de cada corpo. Portanto, o corpo não é definido por sua forma ou função. Forma e funções orgânicas dependem de arranjos de velocidades e ralentações e não vice-versa. Vale ressaltar que o corpo não está sendo aqui compreendido em termos de forma, mas de forças interativas, como uma complexa relação entre diversas velocidades, como uma elaborada interação entre partículas infinitas.
Então, corpo é movimento e mobilidade. Segunda Proposição Espinosiana: o quê move o corpo ou qual o princípio energético do corpo? Um corpo tem o poder de afetar e ser afetado. Esta capacidade determinante também define as particularidades do corpo: o quê ele afeta e como afeta, e pelo quê ele é afetado e como é afetado. Nesse sentido, Espinosa não define corpo por sua forma ou função, nem como substância ou sujeito. Corpos são vias, meios. Essas vias e meios são as maneiras como o corpo é capaz de afetar e de ser afetado. O corpo é definido pelos afetos que é capaz de gerar, gerir, receber e trocar.
Por isso, Espinosa propõe que um corpo não é separável de suas relações com o mundo, posto que é exatamente uma entidade relacional. O corpo espinosiano não está, e nunca estará, completamente formado, posto que é permanentemente informado pelo mundo, ou, parte de mundo que é. Inacabado, ou ainda, inacabável, provisório, parcial, participante – está, incessantemente, não apenas se transformando, mas sendo gerado. Tenho particular interesse na resposta espinosiana pelo grau de abstração e a amplitude daí decorrente.
É com esse corpo espinosiano que quero pensar os encontros que aconteceram na praça; nesse corpo que está disponível para afetar e ser afetado para criar zonas de micro elementos virtuais em relação dinâmica instável: atingir o encontro por outro canal, procurar uma comunicação mais profunda. Como diz José Gil:
Deixar-se “invadir”, “impregnar” pelo corpo significa principalmente entrar na zona das pequenas percepções. A consciência vígil, clara e distinta, a consciência intencional que visa o sentido do mundo e que delimita um campo de luz, deixa de ser pregnantes em proveito das pequenas percepções e do seu movimento crepuscular (GIL, 2004, 130).
Atingir essa zona de turbulência, salientada por Ferracini (2007) no que se refere ao espaço-tempo elementar, cujo tempo-espaço tornam-se virtuais aiônicos e paradoxais de Escher. É necessário lembrar que um dos temas recorrentes da obra de Escher é a sobreposição de vários espaços sobre uma mesma imagem. Paradoxalmente, somos convidados a ver dois mundos diferentes num único lugar e ao mesmo tempo. Desse modo, Escher consegue juntar numa mesma imagem dois planos, e por vezes três, de forma tão natural que o observador é levado a acreditar que essa imagem é possível, que é possível abarcar dois ou três mundos ao mesmo tempo.
Os encontros inusitados que aconteceram durante as 8 horas de experiência estética na Praça da República não se localiza somente no meu corpo muscular, ou somente na presença ou ausência dos signos que o meu corpo produziu, ou mesmo, apenas na imaginação ou capacidade semiótica do outro. O encontro está na relação dinâmica “entre” todos esses espaços e zonas. O encontro não é produção, mas (in)produção, diluição, capacidade que esse corpo possui em se lançar, ele mesmo e os outros, em zonas de contágio e turbulência, criando e gerando encontros nessa zona virtual e intensiva.


Bibliografia
DEBORD, Guy. Perspectivas da transformação consciente da vida quotidiana. 1961. DEWEY, J. Reconstrução em filosofia. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nacional, 1959.
DELEUZE, Gilles. Espinosa, filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002
FERRACINI, Renato. O corpo-subjétil e as micropercepções: um espaço-tempo elementar. Tempo e Performance. Brasília: Capes, p. 111-120, 2007.
GIL, José. Movimento total. O corpo e a dança.São Paulo: Iluminuras, 2004.
ROLNIK, Suely. Uma insólita viagem à subjetividade. Cultura e subjetividade. Campinas, SP: Papirus.[Links], 1997.

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